Opinião

Ninguém ganhará esta guerra

O dever da comunidade internacional é facilitar a sua coexistência sem conflitos, não o contrário

Foto: Aris Messinis/AFP
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Esta guerra, todas as guerras, é uma escalada de horror, de violência e de morte. Enquanto decorrem parecem não admitir outras palavras que não sejam de ódio e de vingança. Esta é a armadilha – no momento em que mais são necessárias palavras de paz, nada parece permitido senão o discurso da retaliação. O discurso de paz é covarde, o da desforra é o único possível. E, no entanto, é preciso voltar a dizer que a paz vai exigir mais coragem do que continuar a fazer a guerra. No meio do inferno da guerra, a verdadeira grandeza é a de lutar pela paz.

A primeira coisa que não me agrada no discurso ocidental é que parece estar a se consolidar um ambiente intelectual que nada admite que seja dito, além da condenação sem reservas da agressão russa. Condene e cale-se. Deixe o resto conosco. Nada de contexto e, sobretudo, nada de vacilar na retórica belicista de contra-ataque. Nos Estados Unidos, alguns estrategistas da política externa não perderam tempo: “Vem aí uma nova ordem de desordem” e “Se nada fizermos, a desordem instalar-se-á”. Claro está que nesta linha o presidente Joe Biden é um covarde e a sua liderança, ao se recusar a entrar no conflito, está a “liderar por detrás”.

Na Europa, o discurso é mais ou menos o mesmo – o momento é de pedir mais armas, mais orçamento de defesa, mais segurança. O projeto de integração política europeu, outrora bem fincado na ideia da política e do direito, sucumbe agora à ideia de que só o poder e a força contam. Num momento de aflição, é desesperante ver a União Europeia entregar-se a uma desenfreada corrida aos armamentos. Que tristeza.

E, no entanto, é preciso falar de paz. As escolhas que terão de ser feitas nos próximos dias serão muito difíceis e acredito que serão especialmente difíceis para os ucranianos. Um cessar-fogo que permitisse uma negociação mais leal parece ser impossível de alcançar. É certo que a neutralidade, que esteve na primeira linha da disputa, parece ser agora o ponto mais fácil de regular num qualquer plano de paz. Mas falta o resto, falta o território, falta a questão da Crimeia e a questão das duas províncias do Donbas. Falta a própria segurança da Ucrânia e, acredito, falta ainda a questão do prolongamento das sanções. No limite, o acordo de paz existirá quando ambas as partes concluírem que os custos da guerra são mais pesados que os sacrifícios que um acordo traria. Mas, do que não há dúvida, é que o preço da paz vai ser pesado. É por isso que falo da coragem da paz.

No Ocidente, nada se admite além da condenação da Rússia, sem contexto. Condene e cale-se

Por outro lado, o discurso ocidental sobre a guerra da Ucrânia parece também querer fazer cair no olvido todas as guerras de agressão dos últimos 20 anos. ­Robert Gates, que escreve no Washington­ Post, afirma que “a invasão da Ucrânia por Putin acabou com 30 anos de férias da América da história”.  É muito difícil perceber quando é que os Estados ­Unidos tiraram férias da história quando lembramos o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria e o Iêmen. As campanhas da guerra global contra o terror deixaram um rasto de destruição e de caos político em todo o Grande Médio Oriente – mais de 900 mil mortos, segundo os últimos números do “projeto de custos de guerra” da Universidade de Brown.

No ambiente político ocidental, qualquer referência de contexto a estas guerras é tomada como “relativismo moral” ou, pior, como justificação da agressão russa. Não, não é. Pela minha parte, condenei com igual veemência a guerra no Iraque como condenei a invasão da Ucrânia. O que me parece impossível de aceitar é a pretensa superioridade moral de quem apoiou a primeira e condena agora a segunda, impondo, desta vez, o silêncio sobre a primeira. Ambos os casos constituíram violações gravíssimas do direito internacional e em ambos os casos ficaram visíveis os limites do uso da força militar. As duas guerras não foram a continuação da política, mas o falhanço da política. O mesmo é valido para a questão dos refugiados. O exemplar comportamento dos países europeus no acolhimento dos refugiados ucranianos não fará esquecer o fracasso da crise de refugiados das guerras do Médio Oriente. Ao contrário, o contraste ficará mais nítido.

Finalmente, preocupa-me o discurso daqueles que parecem transformar esta tragédia numa oportunidade de regresso ao clima de Guerra Fria. Esta guerra deu-lhes o inimigo de que precisavam e o pretexto para o discurso da exclusão da Rússia da ordem internacional. As sanções, mais do que um instrumento de pressão para acabar com a guerra e obrigar a soluções diplomáticas, parecem caminhar nessa direção – exclusão do sistema financeiro mundial, exclusão do mundo da competição desportiva, exclusão do mundo tecnológico, exclusão do mundo digital. Este caminho acabará por corromper ainda mais a ideia de globalização, caminho esse que estava em movimento.

Não é que o projeto de globalização fosse isento de erros e imperfeições. Nunca foi um projeto perfeito de regulação justa, mas era uma ideia política que apelava à construção de um mundo ­baseado no direito e na cooperação entre os povos. O que podemos ver no horizonte é o duplo mundo formado por dois blocos – o do ­eixo Pequim-Moscou (com a Rússia porventura no desconfortável papel de parceiro júnior) e do outro lado o bloco político dos Estados Unidos aliado ao grupo dos países do G-7. Esta nova realidade­ terá como primeiras vítimas a agenda ambiental e o combate às alterações climáticas em particular. Um mundo de cooperação capaz de produzir bens públicos globais no domínio do comércio justo, no domínio do controle de armamentos e do combate aos fenômenos terroristas parece cada vez mais distante. Não, não acompanho o entusiasmo com que alguns falam dessa “nova ordem”. O que vejo nela é a nostalgia da velha ordem da Guerra Fria.

Voltemos ao início. Ninguém ganhará esta guerra. A Rússia vai pagar o preço dessa aventura militar na sua credibilidade como ator político na cena internacional. A Ucrânia pagará o preço que estamos a ver de destruição e caos. Ninguém sairá a ganhar. Depois da guerra, a Rússia continuará a existir e a Ucrânia também. E continuarão a ser vizinhos. O dever da comunidade internacional é facilitar a sua coexistência sem conflitos, não o contrário. Neste momento, coragem é lutar pela paz. •


*Ex-primeiro-ministro de Portugal.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A grandeza da paz “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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