Ana Beatriz Prudente

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É gestora de Economia Criativa, consultora de Economia Criativa em países africanos, educadora de Empreendedorismo Feminino e membro da Comissão de Cooperação Internacional da Faculdade de Educação da USP.

Opinião

Nigéria no enfrentamento de dois vírus: terrorismo e coronavírus

No caso da covid-19, enquanto o Brasil ainda discutia sobre a necessidade da quarentena, a Nigéria foi enfática e agiu rapidamente

Boko Haram
Militantes do Boko Haram terrorismo boko haram nigéria
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O grupo terrorista Boko Haram há anos vem transformando a vida de meninas nigerianas em uma rotina de medo e insegurança. Meninas de todas as idades são violentadas e aterrorizadas quando cruzam seu caminho. Na visão fundamentalista islâmica, mulheres devem ter uma educação religiosa e aguardar o casamento, de tal maneira que uma educação democrática, laica e de empoderamento feminino é veementemente combatida pelos radicais. Boko Haram significa, na língua Hausa, idioma do norte da Nigéria, “educação ocidental é proibida”. Portanto, já traz no nome seu ódio pelo Ocidente.

 Esta organização se formou com o intuito de instaurar um estado islâmico ultrarradical no país por meio do terrorismo, e foi considerada a mais sanguinária organização terrorista do mundo, em 2015, pelo Índice de Terrorismo Global –  desenvolvido pelo Institute for Economics & Peace (IEP).  O sequestro de meninas é a marca registrada deste grupo, que as transforma em mulheres-bomba, contra suas vontades. Quem consegue sobreviver é forçada à conversão religiosa, escravizada e estuprada; além disso, muitas meninas são vendidas para o tráfico de seres humanos e usadas como fonte de recursos financeiros para enriquecimento e compras de armas.

 O sequestro mais conhecido aconteceu há seis anos no vilarejo de Chibok, nordeste da Nigéria, onde 276 meninas dormiam em um colégio interno quando foram capturadas. A revolta das famílias e da sociedade local gerou o movimento #BringBackOurGirls (“Devolvam-nos as Nossas Meninas”), uma campanha internacional adotada pela então primeira-dama norte-americana Michelle Obama. Segundo relatos de algumas garotas que escaparam, os militantes as utilizavam como escravas sexuais e as vendiam para membros da organização a um preço médio de 12 dólares. Ainda hoje, mais de 100 vítimas continuam desaparecidas.

Vídeo divulgado pelo grupo mostra meninas sequestradas

Para tentar combater a ação do Boko Haram e o avanço de sua violência no país, autoridades nacionais têm desenvolvido algumas iniciativas, entre elas, a criação, em 19 de fevereiro de 2020, da Agência Nacional de Desradicalização, Reabilitação e Reintegração de Insurgentes Arrependidos, por meio de um projeto de lei do senador Ibrahim Gaidam, ex-governador do Estado de Yobe. 

Um passo importante na estratégia destinada a derrotar o Boko Haram, porém acompanhada de muitas polêmicas. As políticas nigerianas têm como essência reinserir na sociedade os soldados desertores a fim de estimular outros participantes do grupo extremista a fazerem o mesmo. Porém, parte da sociedade não vê essa prática com bons olhos e quer que esses integrantes sejam punidos por seus atos e não os aceitam como ressocializados.

Atualmente, a Nigéria possui três programas de desradicalização para os desertores do Boko Haram. O Programa Penitenciário, que trabalha com militantes condenados (ou aguardando julgamento) por delitos violentos, dando treinamento profissional e aulas para que possam se reintegrar à sociedade. Já a Yellow Ribbon Initiative apoia mulheres e crianças associadas ao grupo extremista, oferecendo terapia psicossocial.  Há ainda a Operation Safe Corridor, lançada pelas forças armadas da Nigéria em 2015, que aconselha os desertores em relação a traumas e outras problemáticas.

No entanto, os RRDs não são unanimidade na Nigéria.  Algumas pessoas acham que suas comunidades não são consultadas quando os programas são desenvolvidos e implementados, outras são céticas quanto à reconciliação.  Há também ações militares no combate ao Boko Haram, como o recrutamento 100.000 soldados feito pelo governador de Borno, Babagana Zulum, entre outras. Para serem eficazes, as ações de ressocialização no país devem continuar a trabalhar com as comunidades que receberão os combatentes reabilitados, seus líderes devem reconhecer e trabalhar as causas da insurgência, além de apoiar os esforços não militares.

Boko Haram se aproveita de uma sociedade nigeriana muito machista e encontrou solo fértil na falta de representação dos interesses políticos das mulheres no país. Por isso, a acolhida aos seus ex-membros precisa ser acompanhada por ações de incentivo à educação e à formação cívica das mulheres também.

Vila atacada pelo Boko Haram em abril de 2013

Em meio a essa crise e todas essas medidas polêmicas para conter o extremismo no local, surge a covid-19. A chegada da pandemia é concomitante à política pública de combate ao Boko Haram (interrompida momentaneamente em função do combate ao novo vírus).  Ou seja, a Nigéria, hoje, convive com dois grandes e poderosos vírus:  Boko Haram e o coronavírus. Para tentar controlar o mais novo deles, o presidente nigeriano, Muhammadu Buhari, ordenou, desde março, o confinamento total da capital federal Abuja, além de Lagos, megalópole com 20 milhões de habitantes.

Enquanto o Brasil ainda discutia sobre a necessidade da quarentena, a Nigéria foi enfática e agiu rapidamente. De forma geral, os países africanos deram uma lição para o mundo no estabelecimento de suas quarentenas, embora haja denúncias por parte de movimentos em defesa dos direitos humanos sobre o uso exacerbado das forças armadas, em alguns casos. Brasil e Nigéria guardam muitas semelhanças, são países com populações continentais (a Nigéria é o país mais populoso da África, com 200 milhões habitantes). Assim como o Brasil, o país africano enfrenta grandes desigualdades sociais, regionais, étnicas e econômicas. Na maior parte do continente africano, ainda mais que o Brasil, mesmo havendo negros de pele escura, há diversas etnias fazendo parte da mesma população. Atualmente, ambos também vivem uma onda neopentecostal muito forte.

A Nigéria constatou os primeiros casos do coronavírus vindo de pessoas que haviam chegado do exterior, especialmente Inglaterra (caso da primeira vítima fatal). Assim como no Brasil, cujas primeiras vítimas também estiveram em países europeus.  No entanto, as ações tomadas por cada país foram bastante diferentes: a Nigéria foi muito mais célere que o Brasil no combate, suspendendo logo todos os voos internacionais, fechando escolas, limitando reuniões públicas etc. Um ponto positivo para uma sociedade tão vulnerável por conta da densidade populacional, grandes deslocamentos de pessoas em função dos conflitos armados, além de conviver com sistemas de saúde e carcerário muito precários.

Aqui destaco o sistema carcerário como um ponto delicado e muito semelhante em ambos os países. Brasil e Nigéria pouco respeitam os direitos humanos e, nesse momento, vêm discutindo ou tomando, de fato, medidas para o enfrentamento do problema. O país africano, seguindo o exemplo de Quênia e Etiópia, anunciou a anistia à 2.600 prisioneiros e 70 delinquentes detidos na capital Abuja, usando como critério soltar cidadãos com mais de 60 anos e aqueles cujas penas já estavam quase completas. No Brasil, não há ações concretas nesse sentido, mas já se discute a possibilidade da soltura de presos que cometeram delitos leves, por exemplo.

Em imagem de vídeo, Abubakar Shekau, o chefe do Boko Haram

Há uma diferença muito grande, no entanto, entre Brasil e Nigéria: o respeito às liberdades individuais. Aqui, não contamos com forças de segurança obrigando as pessoas a ficarem em suas casas. Já na Nigéria, apesar do isolamento ter sido positivo no combate ao novo vírus (são somente 450 casos e apenas 13 vítimas fatais no país), há acusações contra a segurança pública sobre mortes ainda não esclarecidas, durante o período de confinamento social.

É importante ressaltar que a Nigéria vive dois grandes desafios: a violência contra a mulher, que continua altíssima, ainda praticada pelo Boko Haram, e o coronavírus, um vírus também bastante violento. Infelizmente, no nosso caso, não ficamos atrás: por conta do confinamento, a violência doméstica no Brasil cresceu muito e convivemos com facções criminosas há décadas.

Desafios da violência urbana no Brasil e na Nigéria

Para se abordar a questão é preciso, antes, frisarmos dois conceitos. O Boko Haram é grupo extremista que age por uma crença política religiosa, ou seja, deseja uma nova ordem por questões ideológicas.  Já o crime organizado nasce por um desejo material de ganho, não tem intenções políticas religiosas. Portanto, são fenômenos diferentes que implicam medidas de mitigação distintas. 

Quando um governo passa a adotar atitudes como a troca de anistia por desarmamento, por exemplo, ele objetiva o reestabelecimento da paz.  As negociações podem ser por rendição ou por tratado sem rendição, de qualquer forma, abandona-se a luta e as organizações extremistas se transformam em agentes políticos legalizados democraticamente, ou seja, se tornam um partido que disputa o poder de forma pacífica. Contudo, a estratégia da Nigéria é diferente, os soldados vão abandonando o Boko Haram para se reintegrarem à sociedade, o governo nigeriano estimula este ato. Mas, nas tentativas de resoluções de conflitos dessa natureza há também, por outro lado, o ressentimento na sociedade, por conta das vítimas e das perdas por conta desse fanatismo. É preciso destacar ainda que é difícil estabelecer padrões éticos nesse momento. Nem sempre se nega um acordo com grupos terroristas, outras vezes se opta pelo combate, não há regra geral quando o princípio é a busca pela paz. Deve-se sempre olhar e avaliar pelo viés do interesse coletivo para se tomar decisões.

O caso do crime organizado brasileiro é uma situação tão difícil quanto os problemas nigerianos, pois tem evoluído e crescido cada vez mais. Ele tem uma origem na década de 1970, como uma forma de reação, com alguma legitimidade, para se evitar estupros e violência nas cadeias – uma situação da qual o Estado não dava conta.  Logo após, na década de 1980, surge como adendo o grande consumo de cocaína no primeiro mundo, tendo como produtores da droga países da América Latina, especialmente, Colômbia e Bolívia. O Brasil, por sua vez, figurou como uma das principais rotas de distribuição internacional, junto com o México. Como consequência, nos tornamos também o segundo país em consumo de cocaína do mundo. O crime organizado, portanto, se formou e cresceu cuidando do escoamento desta droga para a Europa e os Estados Unidos.

No momento em que os Estados Unidos reagem e criam uma política de guerra às drogas, forçando o Brasil a aderir, o crime organizado se amplia por aqui, ao mesmo tempo em que se prende em massa. Hoje, somos o terceiro país que mais aprisiona no mundo, temos uma das polícias que mais mata no mundo, além de sermos um dos maiores em números absolutos de homicídios: mesmo com as recentes quedas nos índices de criminalidade, contamos com mais de 60 mil mortos por ano, de forma violenta.  É praticamente um genocídio, visto que a guerra do Vietnã matou 20 mil em dez anos.

Nossa política punitivista faz com que sejam aprisionados pequenos e micros traficantes, furtadores, pessoas que cometeram crimes de baixa agressividade social. Para sobreviver dentro das cadeias, essas pessoas acabam aderindo às organizações criminosas e passam a praticar atos violentos. Então, para ser combatido, esse problema exige atitudes muito além da repressão. A repressão isolada é inútil. Deve-se investir – e alguns estados têm tido bons resultados nesse aspecto – em Inteligência e mecanismos para se conhecer as organizações criminosas, investir no aparelho repressivo, em melhores equipamentos, melhores salários para policiais etc.

Além disso, é necessário, urgentemente, reduzir o número de normas penais no Brasil.  Contamos com um universo imenso de condutas consideradas crimes, essa onda punitivista em nosso país levou as pessoas a acreditarem que ao ampliar o código penal e considerar mais condutas como crimes, resolve-se o problema da segurança pública. Pelo contrário, essa atitude pode ampliá-lo. Algumas condutas poderiam ter sanções graves somente no plano administrativo, aquelas consideradas crime de risco ou perigo, como por exemplo um motorista embriagado que não fez vítimas. A lógica do nosso código deveria ser punir preferencialmente crimes violentos e deixar os outros crimes para outras formas de punição que não a penal. O que daria mais eficácia à repressão, pois a polícia se concentraria mais em combater questões mais graves, como o crime organizado. 

Portanto, reduzir o código penal não é apenas uma forma de favorecer a liberdade, mas também favorecer a segurança. O direito penal mínimo não é uma manifestação de contradição entre liberdade e segurança, ele atende às duas dimensões.

Friso também que deve ainda se pensar em uma política de desencarceramento de criminosos não violentos. Uma política que pode ser facilmente desenvolvida, bastando cumprir a lei e a Constituição.  Hoje, 42% dos encarcerados no Brasil são por prisão preventiva, ou seja, sem ter tido direito à defesa, uma forma de controle social inconstitucional e contrária aos direitos humanos universais.  A prisão preventiva deveria ser usada somente em casos extraordinários ou graves.

Todas essas possíveis ações conjuntas podem levar a bons resultados para conter este grande problema brasileiro; mas há um aspecto fundamental, que se não resolvido jamais solucionará a violência no Brasil:  a desigualdade social.  Ela está por trás de todos os nossos problemas, desde a educação até a saúde pública, é um problema estrutural cuja solução deve ser radical. Embora não seja fácil, é de extrema necessidade: se quisermos ver nossos filhos vivendo com segurança, é preciso dividir nossa riqueza. Com essa grande desigualdade não vamos resolver de forma definitiva nenhuma de nossas graves questões.

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