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Neoautoritarismo

Governos de exceção, comuns no século passado, deram lugar a medidas absolutistas em regimes democráticos

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Protestos questionam a prática de violação de direitos humanos na prisão de Guantánamo. Foto: Nicholas Kamm/AFP
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As formas de autoritarismo do século XXI possuem determinadas especificidades ­quando comparadas com as manifestações do século anterior. Ainda que identifiquemos elementos de continuidade, as manifestações das últimas décadas, por estarem diluídas na rotina democrática, tornam o tema ainda mais desafiador.

O autoritarismo deixou de ser a manifestação de um estado de exceção em sua acepção clássica para dar lugar às medidas de exceção associadas à produção fractal e líquida. Ou seja, deparamo-nos com um estado de exceção que se manifesta por medidas de exceção e não por governos de exceção.

Em outras palavras, utilizamos a denominação autoritarismo líquido para falar dessa nova natureza das medidas de exceção no interior das rotinas democráticas, por se tratar de medidas fragmentadas, cirúrgicas, acionadas sob uma aparência de legalidade, o que torna sua identificação mais difícil.

Essa nova forma de autoritarismo é identificada, grosso modo, no governo Trump, no âmbito do qual, além das citadas características, em vez de essas medidas se protraírem no tempo e serem produzidas paulatinamente, seguem aquele velho estratagema de matriz maquiavélica segundo o qual o mal se faz de uma vez só. Trump concentrou, estrategicamente, a produção de medidas de exceção, o que dificulta a crítica e o questionamento.

Foram adotadas medidas que restringem o direito à livre expressão por parte de cientistas e pesquisadores, que tolhem direitos de imigrantes, que colocam em xeque o multilateralismo e que visam, em escala ampla, fragilizar as instituições domésticas de controle do poder e de tutela dos direitos sociais.

Com efeito, nas fronteiras norte-americanas, a decretação do estado de emergência implicou o esvaziamento de direitos dos imigrantes. Deportações cruéis e degradantes, violência e desrespeito à integridade física e moral objetivam transmitir o contundente recado de que o outro ali não será aceito. O uso de Guantánamo com a finalidade de aprisionar migrantes, algo brutal, com todo simbolismo que, inclusive, representa, é, igualmente, um recado categórico de uma nova forma de tratar o inimigo, desumanizando-o ao subtrair a proteção jurídica e política mínima a que qualquer corpo humano deveria ter direito em face de todo e qualquer poder político.

A desumanização levada a efeito pela exceção ocorre escolhendo o inimigo e nomeando-o. É a linguagem que desumaniza o inimigo por meio do enquadramento em determinada categoria supressora de qualquer individualidade.

Tais exemplos nos levam a afirmar, enfaticamente, que os Estados Unidos vivem um momento especialmente autoritário, jogando no lixo a imagem incondicional ou ao menos a relevante posição na tutela dos direitos em escala global que assumiram no passado.

Isto é grave e vai ter repercussões profundas não apenas na vida norte-americana, mas no mundo. Estamos diante da ascensão de uma nova extrema-direita dotada de elevadíssimo potencial autoritário, assim como a clássica extrema-direita nazifascista, mas com novas vestes e novo instrumental.

Medo e ódio são capturados pelo soberano por meio de narrativas pretensamente racionais e legitimadoras da imposição de mecanismos de segregação e violência, em prejuízo da pluralidade e da tolerância. Os exemplos aqui citados, aos quais se somam muitos outros, tais como o enfraquecimento de órgãos multilaterais de defesa de direitos, guerra comercial e utilização do caos e da força bruta como instrumento cotidiano de formação de capital político, nos levam a alertar que a história humana não ocorre por fases estanques, como às vezes a descrição didática em perío­dos transparece ao inadvertido.

Ao contrário, ela revela-se em processos complexos, nos quais elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e comumente são – identificados nos subsequentes. Inexistem, inclusive, garantias contra retrocessos e involuções civilizatórias.

A análise do autoritarismo líquido, assim intitulado por não se assumir como tal, não ser uniforme e minar, em intensidades variadas, os âmbitos da vida democrática, impõe aprofundada avaliação dos fatores de desestabilização e de subversão dos direitos fundamentais e da democracia. O enfrentamento à gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade requer que desnudemos os artifícios das novas formas de autoritarismo enfraquecedoras do nosso pacto civilizatório. •

Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Neoautoritarismo’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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