Mary Menton

Opinião

Nem um dia de paz

Quando penso no Brasil neste fim de 2021, sofro uma dissonância cognitiva profunda

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“Mana, não temos nem um dia de paz”, dizem meus colegas dos movimentos sociais no Brasil. Há poucos dias, recebemos um pedido de socorro de moradores de um acampamento que foi atacado, notícias da invasão de garimpeiros em uma terra indígena, o alerta sobre a ameaça de morte contra uma liderança e a denúncia sobre um assalto contra a casa de outra.

Quando penso no Brasil neste fim de 2021, sofro uma dissonância cognitiva profunda. Uma mistura de amor e tristeza, raiva e desespero combinados com esperança e sonhos. Porque representa um país em crise, sofrendo as maiores taxas de desmatamento nos últimos anos, um aumento descarado de violência contra os povos que mantêm a floresta em pé e ataques constantes contra o direito a uma vida digna. Ao mesmo tempo, vejo processos muito importantes de fortalecimento das lutas de resistência contra um (des)envolvimento capitalista que passa por cima das florestas e dos povos que tentam ­frear o avanço da destruição.

Logo depois da eleição de Jair Bolsonaro, escrevi um artigo para a New ­Scientist sobre as ameaças do novo governo para os povos indígenas e as florestas no Brasil. Quando reflito sobre os últimos três anos, nossas previsões chegaram a se rea­lizar. Na verdade, com a pandemia da ­Covid-19, ficou pior do que podíamos imaginar. A morte dos anciões, com a consequente perda de conhecimento ancestral, foi um desastre evitável. Mas com um presidente que desdenhou da ciência e não se importou com as mortes e o sofrimento no seu próprio país, a trajetória da crise sanitária seguiu outro rumo. A pandemia abriu a brecha para “passar a boiada” e representou uma devastação profunda para muitos povos e comunidades tradicionais.

MARY MENTON: Norte-americana, mestre em Silvicultura e doutora em Conservação e Desenvolvimento Florestal pela Universidade de Oxford, possui vasta experiência em pesquisa aplicada. Cofundadora da consultoria ambiental SEED.

O governo tomou a decisão de seguir com as suas políticas de “passar a boiada” e, ao mesmo tempo, tentar cultivar uma imagem de santinho no exterior. O Brasil chegou na conferência do clima, a COP26, em Glasgow, com a maior delegação de todos os países presentes, enquanto o pedido de participação de Joênia Wapichana­ foi negado e ela teve de seguir outros meios para conseguir crachá para entrar. A delegação brasileira assinou o acordo para acabar com o desmatamento até 2030, enquanto escondia os dados mais recentes da destruição no Brasil: as taxas mais altas em 15 anos. Na mesma semana da assinatura dessa promessa de crocodilo, um acampamento no sudeste do Pará foi atacado por fazendeiros, que torturaram os moradores. A polícia recusou-se a prestar socorro. O relatório mais recente do Cimi mostra um aumento alarmante dos casos de violações contra os povos indígenas, um número crescente de invasões dos seus territórios. Como vão reduzir o desmatamento num país que não protege os direitos humanos daqueles que defendem a floresta?

Atualmente, o PL da Grilagem, ou PL da Boiada, está em debate no Congresso. Representa uma ameaça tremenda aos povos e às florestas do País. E deixa muito claro que as promessas na COP26 foram feitas sem intenção nenhuma de mudar as políticas internas e cumprir com essa promessa. Ao mesmo tempo, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos colocou na pauta de discussão a inclusão de ‘povos garimpeiros e pecuaristas’ na definição de “povos e comunidades tradicionais”. O absurdo de classificar garimpeiros como povo, muito menos um povo tradicional, destaca a profundidade da intencionalidade das ações de desgovernança do atual governo.

Quando conversamos sobre o próximo ano, colegas no Brasil falam de medo. Medo do impacto da desumanização e normalização das violências transcorrentes desde o início do mandato de Bolsonaro. Medo de que os retrocessos irão muito além do tempo do mandato e projetos de leis que estão em discussão neste ano. Os monstros saíram das suas caixas, os discursos de ódio e climas de terror normalizaram o racismo, a violação e o desrespeito aos direitos humanos. Quando começam a mudar as normas culturais e sociais com esse tipo de retrocesso, com passos para trás tão graves, pode demorar anos, se não décadas, para voltarmos ao patamar da situação de antes de Bolsonaro.

HÁ UM MEDO DE QUE OS RETROCESSOS PERDUREM MUITO ALÉM DO TEMPO DO MANDATO DE BOLSONARO E DOS PROJETOS DE LEI EM DISCUSSÃO NESTE MOMENTO

O mundo daqui da Europa, onde vivo (ou o ex-Europa, como é o caso do Reino­ Unido depois do Brexit), está diretamente ligado a essas violências no Brasil. A carne que compramos vem do Brasil, das fazendas com trabalho escravo, das fazendas do massacre de Pau d’Arco, dos epicentros de violência e desmatamento ilegal. Mas, além disso, é uma questão de humanidade, de lutar contra um governo genocida, e isso nos afeta a todos. O genocídio não está restrito aos campos de concentração nazistas ou massacres contra a população Tutsi em Ruanda. No Brasil, têm sido criadas as condições de genocídio por omissão, o genocídio que se efetiva com a tomada da decisão política de não fazer o que se deve para intervir quando certas classes de indivíduos morrem por falta de acesso à saúde, comida ou serviços básicos. O genocídio por deixar morrer, a necropolítica.

É importante relembrar que não está tudo perdido, e que no meio de tanta tragédia há resistência. Movimentos coletivos em luta contra os monstros que tentaram tomar conta do País. Vejo muita luz e esperança no fortalecimento dos movimentos indígenas nos últimos anos, que cresceram muito com as novas lideranças que conseguiram acesso às universidades, por políticas afirmativas e se formaram em Direito, Ciências Sociais, Medicina, Jornalismo e outras profissões. Depois de três anos de desgovernança, mais da metade dos brasileiros rejeita o governo Bolsonaro. Há protestos nas ruas e denúncias ao Tribunal Penal Internacional em Haia, um deles liderado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) referente às violações contra as etnias. Embora a bancada ruralista e os bolsonaristas tenham poder econômico e político, eles não têm raízes, e as bases seguem firmes na luta contra os retrocessos. A luta segue em pé, e a resistência vencerá. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: REDES SOCIAIS E LULA SAMPAIO/AFP

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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