Nem tudo é o que parece ser na linguagem difundida pelos EUA

A luta contra a Rússia tem por ­objetivo enfraquecer a China

Efeitos. O Batalhão Azov é uma das tantas milícias neonazistas da Ucrânia. Derrubar Putin não vai significar por extensão uma vitória da democracia - Imagem: Presidência da Rússia e STR/NurPhoto/AFP

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Na linguagem internacionalista dos Estados Unidos, o mundo divide-se em dois: democracias (nós) e autocracias (eles). Ainda há poucos anos a divisão era entre democracias e ditaduras. É difícil conhecer as razões da mudança, mas é legítimo especular sobre elas. A minha especulação é que autocracia é um termo muito mais vago que, por isso, pode ser usado para considerar autocrata um governo democrático tido por hostil, mesmo que a hostilidade não derive das características do regime.

Na cimeira da democracia realizada em dezembro de 2021, por iniciativa do presidente Joe Biden, não foram convidados, por exemplo, países como Argentina e Bolívia, que tinham atravessado recentemente vibrantes processos democráticos, mas são menos receptivos aos interesses econômicos e geoestratégicos dos Estados Unidos. Em contrapartida, foram convidadas três nações com democracias reconhecidamente problemáticas (o termo é flawed democracies), com corrupção endêmica e com abusos dos direitos humanos, mas com interesse estratégico para os norte-americanos: as Filipinas, por contrariar a influência da China, o Paquistão, pela sua relevância na luta contra o terrorismo, e a Ucrânia, pela sua resistência à incursão da Rússia. A guerra da Ucrânia veio dar um novo ímpeto à distinção e uma nova leitura. Agora, a Ucrânia representa a luta da democracia contra a autocracia da Rússia (que, no nível interno, deve estar a par da Ucrânia em termos de corrupção e de abusos de direitos humanos).

E a luta contra a Rússia tem por ­objetivo enfraquecer outra grande autocracia, a China, até há pouco um “parceiro econômico fundamental”. O conceito de democracia perde, assim, boa parte do seu conteúdo político e transforma-se numa arma de arremesso para promover mudanças de governo que favoreçam os interesses globais de Washington. Se assim for, corremos o risco de cada vez mais lutas poderem ser travadas em nome da democracia, com o objetivo real de a destruir onde ela de fato existe. Vejamos os riscos que as democracias europeias estão a correr.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa Ocidental, recuperando, com o apoio dos EUA, uma tradição que vinha do início do século, tornou-se a região do mundo onde a democracia liberal, representativa, mais se aprofundou e consolidou. Com exceção da Europa do Sul (Portugal, Espanha e Grécia) até meados da década de 1970, consolidou-se um modelo que ficou conhecido por social-democracia e que consistiu na expansão paralela dos direitos cívicos e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais, com base nos quais se criaram amplas classes médias e uma forma de estado, o Estado Social de Direito.

A Europa está assim em risco de ter no seu seio um nazi-jihadismo nutrido

A partir da década de 1980, esse modelo começou a entrar em crise, dessa vez igualmente impulsionado por ventos que vinham dos EUA (o neoliberalismo e o Consenso de Washington) e que atacavam, por insustentáveis, os direitos econômicos e sociais. Esse ataque continuou até hoje e, combinado com as migrações em grande parte de países desestabilizados por guerras conduzidas pelos EUA, está na origem do crescimento das forças de extrema-direita que agora põem em causa a democracia no seu todo.

Uma chave do êxito da social-democracia residiu no fato de a Europa ser o continente com orçamentos militares mais baixos em termos relativos. O primeiro risco das democracias europeias reside no seguinte: todos os países agora apostam em aumentar os orçamentos militares e o que for gasto em armas será ­retirado do que seria gasto em políticas sociais, com a agravante do aumento exponencial da energia. Por outro lado, se chegar ao nível de despesas militares previsto (2% do PIB), a Alemanha será daqui a alguns anos o terceiro ou quarto maior poder militar do mundo. A Alemanha, que é o país da Europa mais forte economicamente, será então também o país militarmente mais forte. Um preocupante horizonte.


O segundo risco advém do fortalecimento das forças políticas e militares de extrema-direita da Ucrânia, algumas delas neonazis. Dois anos atrás, 40% das forças militares do país (um total de 102 mil integrantes, segundo a agência de notícias Reuters) eram milícias paramilitares de extrema-direita, armadas, financiadas e treinadas por EUA, Inglaterra, Canadá, França e Suíça, com integrantes de 19 nacionalidades. Desde que a guerra começou, mais elementos se juntaram ao grupo, alguns vindo do Oriente Médio, e mais armas receberam de todos os países da Organização do ­Tratado do Atlântico Norte. A Europa está assim em risco de ter no seu seio um nazijihadismo nutrido, e nada nos garante que o seu raio de ação se limite à Polônia. Em 1998, o antigo conselheiro de Segurança do presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, afirmava em entrevista ao Nouvel Observateur: “Em 1979, aumentamos a probabilidade de a União Soviética invadir o Afeganistão… e criar a oportunidade de lhes dar o seu Vietnã”. Não me surpreenderia se este playbook da CIA não estivesse agora a ser aplicado na Ucrânia. As consequências para a democracia serão fatais.  •

 

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Democracias e autocracias”

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1 comentário

PAULO SERGIO CORDEIRO SANTOS 6 de abril de 2022 23h15
Pois é, os EUA chamam de países democráticos, muitas vezes, somente os que se alinham aos seus interesses outros, mesmo tendo eleições periódicas com sufrágio universal e que atendem as suas populações com equidade, mas que não atendem ás ordens do Tio Sam, estes são excluídos do clube dos “democráticos” ou considerados párias. Os programa neoliberais concentraram riqueza e poder nas mãos de poucos. Quando houve o ataque do 11 de setembro em Nova York, os governantes estadunidenses, em seu radar persecutório fizeram uma espécie de sondagem para ver quem estava ao seu lado no “combate ao terror”. Os que estiveram neutros ou contra, fatalmente se colocaram na mira do império. O nazifascismo é produto do neoliberalismo, que foi implementado pelo Consenso de Washington. A partir do momento em que a Rússia começou a se recuperar do desmantelamento soviético e buscar um lugar no cenário mundial sob os auspícios de Vladimir Putin, isso incomodou os EUA. Além da China, parceira de ocasião de Tio Sam, e que agora é enxergada com muita cautela, devido às intimas relações de Xi-Jinping com Putin. Para os EUA, todos têm que estar a sua mercê. É democrata aquele pais que lhes apetece ou serve aos seus interesses, caso contrário, tal país pode ser chamado de autocracia, pseudodemocracia e até mesmo de ditadura. A Venezuela, até pouco tempo foi marginalizada e denominada de uma ditadura sanguinária, agora com o boicote do petróleo russo pelos estadunidenses, o governo de Maduro está sendo considerado como uma democracia viva e uma país amigo. Quanta hipocrisia!

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