Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

Nem tudo é o que parece ser na linguagem difundida pelos EUA

A luta contra a Rússia tem por ­objetivo enfraquecer a China

Efeitos. O Batalhão Azov é uma das tantas milícias neonazistas da Ucrânia. Derrubar Putin não vai significar por extensão uma vitória da democracia - Imagem: Presidência da Rússia e STR/NurPhoto/AFP
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Na linguagem internacionalista dos Estados Unidos, o mundo divide-se em dois: democracias (nós) e autocracias (eles). Ainda há poucos anos a divisão era entre democracias e ditaduras. É difícil conhecer as razões da mudança, mas é legítimo especular sobre elas. A minha especulação é que autocracia é um termo muito mais vago que, por isso, pode ser usado para considerar autocrata um governo democrático tido por hostil, mesmo que a hostilidade não derive das características do regime.

Na cimeira da democracia realizada em dezembro de 2021, por iniciativa do presidente Joe Biden, não foram convidados, por exemplo, países como Argentina e Bolívia, que tinham atravessado recentemente vibrantes processos democráticos, mas são menos receptivos aos interesses econômicos e geoestratégicos dos Estados Unidos. Em contrapartida, foram convidadas três nações com democracias reconhecidamente problemáticas (o termo é flawed democracies), com corrupção endêmica e com abusos dos direitos humanos, mas com interesse estratégico para os norte-americanos: as Filipinas, por contrariar a influência da China, o Paquistão, pela sua relevância na luta contra o terrorismo, e a Ucrânia, pela sua resistência à incursão da Rússia. A guerra da Ucrânia veio dar um novo ímpeto à distinção e uma nova leitura. Agora, a Ucrânia representa a luta da democracia contra a autocracia da Rússia (que, no nível interno, deve estar a par da Ucrânia em termos de corrupção e de abusos de direitos humanos).

E a luta contra a Rússia tem por ­objetivo enfraquecer outra grande autocracia, a China, até há pouco um “parceiro econômico fundamental”. O conceito de democracia perde, assim, boa parte do seu conteúdo político e transforma-se numa arma de arremesso para promover mudanças de governo que favoreçam os interesses globais de Washington. Se assim for, corremos o risco de cada vez mais lutas poderem ser travadas em nome da democracia, com o objetivo real de a destruir onde ela de fato existe. Vejamos os riscos que as democracias europeias estão a correr.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa Ocidental, recuperando, com o apoio dos EUA, uma tradição que vinha do início do século, tornou-se a região do mundo onde a democracia liberal, representativa, mais se aprofundou e consolidou. Com exceção da Europa do Sul (Portugal, Espanha e Grécia) até meados da década de 1970, consolidou-se um modelo que ficou conhecido por social-democracia e que consistiu na expansão paralela dos direitos cívicos e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais, com base nos quais se criaram amplas classes médias e uma forma de estado, o Estado Social de Direito.

A Europa está assim em risco de ter no seu seio um nazi-jihadismo nutrido

A partir da década de 1980, esse modelo começou a entrar em crise, dessa vez igualmente impulsionado por ventos que vinham dos EUA (o neoliberalismo e o Consenso de Washington) e que atacavam, por insustentáveis, os direitos econômicos e sociais. Esse ataque continuou até hoje e, combinado com as migrações em grande parte de países desestabilizados por guerras conduzidas pelos EUA, está na origem do crescimento das forças de extrema-direita que agora põem em causa a democracia no seu todo.

Uma chave do êxito da social-democracia residiu no fato de a Europa ser o continente com orçamentos militares mais baixos em termos relativos. O primeiro risco das democracias europeias reside no seguinte: todos os países agora apostam em aumentar os orçamentos militares e o que for gasto em armas será ­retirado do que seria gasto em políticas sociais, com a agravante do aumento exponencial da energia. Por outro lado, se chegar ao nível de despesas militares previsto (2% do PIB), a Alemanha será daqui a alguns anos o terceiro ou quarto maior poder militar do mundo. A Alemanha, que é o país da Europa mais forte economicamente, será então também o país militarmente mais forte. Um preocupante horizonte.

O segundo risco advém do fortalecimento das forças políticas e militares de extrema-direita da Ucrânia, algumas delas neonazis. Dois anos atrás, 40% das forças militares do país (um total de 102 mil integrantes, segundo a agência de notícias Reuters) eram milícias paramilitares de extrema-direita, armadas, financiadas e treinadas por EUA, Inglaterra, Canadá, França e Suíça, com integrantes de 19 nacionalidades. Desde que a guerra começou, mais elementos se juntaram ao grupo, alguns vindo do Oriente Médio, e mais armas receberam de todos os países da Organização do ­Tratado do Atlântico Norte. A Europa está assim em risco de ter no seu seio um nazijihadismo nutrido, e nada nos garante que o seu raio de ação se limite à Polônia. Em 1998, o antigo conselheiro de Segurança do presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, afirmava em entrevista ao Nouvel Observateur: “Em 1979, aumentamos a probabilidade de a União Soviética invadir o Afeganistão… e criar a oportunidade de lhes dar o seu Vietnã”. Não me surpreenderia se este playbook da CIA não estivesse agora a ser aplicado na Ucrânia. As consequências para a democracia serão fatais.  •

 

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Democracias e autocracias”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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