Sidarta Ribeiro

Professor titular de neurociência, um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN

Opinião

Nem Putin representa o proletariado, nem Biden é o Capitão América

No Brasil, a discussão sobre a guerra na Ucrânica parece um Fla-Flu distante, uma miragem que divide as pessoas na ignorância virtual da dor alheia

Joe Biden e Vladimir Putin. Fotos: AFP
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No filme A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971), máquinas fabris consomem a força e depois moem um dedo do operário-padrão, cujo trabalho, progressivamente desvalorizado, é afinal descartado. Usado à exaustão, o homem vira suco.

Se o capitalismo em tempos de paz promete o paraíso enquanto nos devora, é na guerra que o inferno de lucro e morte alcança o horror máximo. A discussão no Brasil sobre a guerra na Ucrânia parece um Fla-Flu distante, uma miragem que divide as pessoas na ignorância virtual da dor alheia, mas não lhes permite sentir o medo real das bombas que mutilam corpos e fazem órfãos. O conflito aproxima certos esquerdistas e direitistas, distintos em quase tudo, mas adeptos da mesma lógica: “Morre tu que vivo eu”.

Combatentes teóricos abundam, de longe é fácil se inflamar. Guerrilheiro de verdade, Pepe Mujica declarou à Deutsche Welle: “Qual o sentido do engasgamento (…) com o que pode ou não acontecer na Ucrânia? Qual é o sentido dos orçamentos militares terríveis desta época? Qual é o sentido da vida humana, se não somos capazes de reagir e sair da pré-história? (…) Enquanto a guerra for uma maneira de desempatar os nossos conflitos (…) seguiremos na pré-história, com a única diferença de que a barbárie dos (…) humanos primitivos parece brincadeira de criança comparada à barbárie dos homens contemporâneos. Até quando? Este é desafio que os jovens têm pela frente, de lutar por um mundo melhor, e que percebamos a responsabilidade coletiva que, como sociedade, temos. É impossível sonhar?” Falou e disse. Entre os interesses geopolíticos das grandes potências, qualquer uma delas, fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita e é bonita.

Ingenuidade hippie? Infantilidade geopolítica? Conversa pra boi dormir. Tolice desinfantil é achar que se pode brincar com fogo, petróleo ou plutônio sem destruir o sonho. Guerra no sul dos outros é refresco. Nem Putin representa o proletariado nem Biden é o Capitão América. Há fascistas de ambos os lados, assim como multidões de todo o espectro político. Enquanto gente mata gente, o complexo industrial-militar planetário tem orgasmos múltiplos com o aumento dos gastos bélicos. Síria, Iêmen, Iraque, Afeganistão, Líbia, Congo, Ucrânia: cizânia e grana.

Sou mais o velho e a criança. Revolução de verdade é desnuclearizar, desmilitarizar e desoligarquizar todos os países. Rápido, antes que dê merda de vez. Desculpem o meu francês. É que não devíamos estar falando de nada disso. Guerra foi a coisa mais moderna lá no início do paleolítico. Cadê o nosso bom senso político?

O que interessa mesmo é menina, menino, professora, professor, escola, livro, museu, laboratório, quadra, parque, jardim e floresta – não necessariamente nessa ordem. O que interessa é melhorar a sala de aula, pois nunca houve tanta coisa interessante a aprender. O que interessa são as cabeças criadoras de futuro, a reinvenção permanente das possibilidades, a fermentação de todas as ciências e culturas, a conquista construtiva de nossas capacidades. Gente é pra brilhar, não pra morrer de drone.

Está tudo perdido? Não! Desde que começou a opressão entre pessoas, apesar de toda a desigualdade atual, provavelmente nunca estivemos tão perto de construir o paraíso. É tão descomunal a riqueza material e imaterial acumulada agora que, se navegarmos bem, poderemos chegar a um inédito bem-estar. Temos repertório moral e potencial científico para melhorar não apenas as experiências humanas sobre a Terra, mas também as das outras espécies.

Entretanto, teremos bom futuro somente e tão somente se os mais fortes, afinal, aceitarem que o seu papel é cuidar dos mais fracos. Se os bilionários entenderem – à força de muita luta, pressão e persuasão – que o desejo de acúmulo sem limites é uma doença, que é preciso pagar impostos, investir no povo, respeitar a democracia e proteger o meio ambiente. Se cristãos, muçulmanos, hinduístas e outros istas agirem com o amor que dizem sentir. Se entendermos que as melhores coisas da vida custam pouco e valem tudo. Se os sedados despertarem, se os sensatos vencerem, se os adultos deixarem, ainda pode ser maravilhoso este século 21.

Infelizmente, não parece provável. Construir o paraíso exige desviar a rota, sair de banda, esquivar da carnificina que não cessa. Se não mudarmos o curso, vamos pastar, mugir e sofrer. O resto é conversa pra boi morrer.

No convés da nau que aderna, eleva-se a responsabilidade de quem tem juízo e coração. Que aflição! Mães e pais sabem bem o valor de uma criança. Nesta hora sofrida, só o amor pode socorrer a vida. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Só o amor pode nos socorrer”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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