Opinião

cadastre-se e leia

Navegando sem bússola

Para que monitorar os níveis de popularidade e avaliação positiva de um candidato se, na hora de votar, os eleitores vão ignorá-los?

Navegando sem bússola
Navegando sem bússola
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia em Brasília. Foto: Ricardo Stuckert/PR
Apoie Siga-nos no

Saímos da eleição perplexos, com a sensação de não entender o País. O Brasil havia se tornado incompreensível, com uma sociedade e uma vida política inexplicáveis. Nos dois primeiros meses de 2023, as coisas pioraram. Nem tanto pelo que vimos em 8 de janeiro, mas pelo que não vimos. Alguns dias depois da irrupção de toda aquela estupidez estávamos de volta à “normalidade” dos últimos anos. Nem sequer uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi instalada para manter em pauta a discussão. A mesma que não foi criada para apurar a responsabilidade pelo massacre do povo ­Yanomâmi, uma oportunidade de nos fazer pensar no país que queremos ser. Através dos dois silêncios, é como se reconhecêssemos que estamos onde a eleição mostrou, à beira da barbárie, sempre em risco de nos perder por dentro dela.

Está claro que o mais assustador no resultado do pleito foi a quantidade e a distribuição dos votos que o capitão recebeu. Quase a metade do eleitorado o preferiu, sendo majoritária na parte mais rica e desenvolvida do País. Considerando quem é Bolsonaro, sua trajetória política e o que foram os quatro anos em que esteve à frente do governo, a eleição brasileira foi mais surpreendente do que qualquer outra no mundo de hoje. Por piores que sejam personagens como Donald Trump, Boris ­Johnson e ­Narendra Modi, para ficar apenas nos principais expoentes da direita internacional, nenhum é tão ruim, no plano moral e intelectual, tão incompetente e cafajeste quanto o brasileiro. Para piorar, alguém que se apresentou como candidato de si mesmo, enquanto os outros disputaram eleições como representantes de grandes e tradicionais partidos.

O voto dado a Bolsonaro é a radicalização de um modo de votar no qual são irrelevantes a biografia, os atributos e o desempenho dos candidatos. Ao contrário do que ensina o bê-á-bá da política e do consagrado no senso comum, metade do eleitorado brasileiro escolheu um representante sabidamente desqualificado e incapaz de realizar uma administração adequada, como o capitão demostrou ao longo do período em que esteve sentado na cadeira de presidente. Se escolhê-lo podia ser desculpado em 2018, foi irracional insistir em seu nome na eleição seguinte ou preferi-lo a qualquer outro.

A irracionalidade que vimos na eleição, expressa no vasto contingente que mostrou querer a continuidade do que sabia ser um governo medíocre ou mau (precariamente justificado por seus eleitores mediante desculpas como a pandemia e a “perseguição” que teria sofrido das “elites”), é um problema complicado para Lula. Desde quando resolveu ser candidato, o presidente apostou que recuperaria o lugar que merecia na opinião pública, a aprovação e avaliação positiva que tinha antes de sofrer o ataque sem tréguas desfechado contra ele e o PT, capitaneado pela indústria da comunicação, que o levou à prisão. Estava convencido de que conseguiria voltar a fazer um bom governo, capaz de melhorar a vida das pessoas, especialmente as mais necessitadas. Trabalharia com gente de bem, tinha boas propostas e imaginava que seria julgado na comparação com o caos herdado da gangue que saía.

É certo que seus eleitores irão aprová-lo, mas é incerto que o eleitorado do capitão consiga (ou queira) ver algum avanço no volume e na qualidade da ação do governo. Ao contrário, é possível que considere que tudo está igual (senão pior) e que eventuais melhoras resultem da “herança bendita” do antecessor. De um lado, dado o estado calamitoso em que Lula recebeu o governo, ampliou-se o prazo para que mudanças positivas sejam perceptíveis. De outro, não há motivo para confiar na racionalidade de quem se mostrou tão pouco racional.

Não foi apenas no Brasil que o conceito de aprovação do governo perdeu relevância na vida política, como vimos em eleições recentes mundo afora. Se quase a metade do eleitorado votou em um candidato que havia se revelado um presidente ruim ou péssimo, que importância tem o desempenho objetivo de um governante como critério de escolha eleitoral? Para que monitorar seus níveis de popularidade e avaliação positiva se, na hora de votar, os eleitores vão ignorá-los?

No ano que vem, teremos eleições para prefeito e vereador e, em mais três, eleições gerais. Fora verdades banais e obviedades, ninguém sabe o que o Brasil pensa e como chegaremos a elas. Só sabemos que (quase) tudo que considerávamos conhecido está posto em dúvida. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Navegando sem bússola”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo