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Opinião

Nas trincheiras pelo direito à memória e à verdade

Dia 31 de março é sim dia de ir às ruas. Mas não para comemorar

Ditadura 1 (Foto: Arquivo Nacional/ Correio da Manhã)
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Entre os anos de 1954 e 1989, os países do Cone Sul viveram sob a dominação de ditaduras militares que fizeram recair sobre todas as pessoas envolvidas com a resistência ou oposição política aos governos uma violenta e aterrorizante repressão.

A falta de escrúpulos daqueles que comandavam e punham em prática os extensos e muito bem articulados aparatos de controle dos regimes militares sul-americanos fez com que, indistintamente, homens, mulheres e até crianças fossem vítimas de sequestros, prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos forçados, assassinatos e outras tantas formas de degradação física e psicológica.

Hoje, sabe-se que a violência perpetrada especificamente às mulheres não se limitou à violação sexual. As agressões e os abusos foram extensivos às crianças. Em todo o continente, muitas mães foram torturadas na frente de seus filhos ou os viram serem torturados. Outras, ainda grávidas no momento da prisão, sofreram abortos ou foram separadas de seus bebês ainda recém-nascidos.

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Nesse cenário de horror e obscurantismo, causam especial estarrecimento os casos envolvendo os mais jovens. São relativamente comuns, nos países vizinhos, relatos de sequestros de bebês durante esse período, especialmente na Argentina, no Chile e no Uruguai. Graças a um processo contínuo e permanente de elucidação dos fatos, propiciado pela onda de redemocratizações, foram reveladas diversas histórias de crianças sequestradas no momento da prisão ou assassinato de seus pais biológicos e que depois foram destinadas à adoção por simpatizantes do totalitarismo.

Curiosamente, no entanto, apesar de ter tido uma das mais violentas e vigorosas ditaduras do continente, com milhares de mortos e desaparecidos, o Brasil tem em seus registros oficiais um único caso de criança sequestrada por motivos políticos durante o regime militar.

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Trata-se de Lia Cecília da Silva Martins, hoje uma empresária de 43 anos que, conforme registro dos pais adotivos, mora no Rio de Janeiro. Lia foi sequestrada ainda bebê e levada a um internato em Belém, no Pará, por militares que atuaram na repressão à Guerrilha do Araguaia. Em 1974, ela foi para uma creche e, anos depois, foi adotada.

O tempo passou e, em 2009, Lia teve acesso a uma matéria de O Estado de S. Paulo sobre crianças sequestradas no Araguaia. O jornal citava a existência de um bebê que estava desaparecido e seria, supostamente, filho de um guerrilheiro morto no confronto. Um exame de DNA feito em 2010 indicou 90% de compatibilidade genética entre Lia e os filhos de Antônio Theodoro de Castro, militante filiado ao Partido Comunista do Brasil (PC do B), que desapareceu no Araguaia quando tinha 29 anos. Lia, assim, encontrava sua família biológica.

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Inclusive, foi essa discrepância de dados entre o Brasil e seus vizinhos sul-americanos que despertou o faro jornalístico e investigativo de Eduardo Reina, autor de “Cativeiro sem Fim”, livro publicado pela Alameda Editorial em parceria com o Instituto Vladimir Herzog.

O legado de graves e sistemáticas violações gera obrigações aos Estados, não apenas em relação às vítimas, mas às próprias sociedades. É dever do poder público investigar, processar e punir os violadores de direitos humanos; oferecer reparação adequada e afastar os criminosos de órgãos relacionados ao exercício da lei e de outras posições de autoridade; e – na mesma medida – revelar a verdade para as vítimas, seus familiares e toda a sociedade.

Mas o Estado brasileiro não se mostra capaz, historicamente, de cumprir essa função. Foi assim com as populações indígenas dizimadas pelos colonizadores portugueses e, até hoje, alvo de massacres em todo o território nacional; com os negros covardemente trazidos da África, escravizados e excluídos dos processos de reinclusão social; e, mais recentemente, com as milhares de vítimas da ditadura militar.

Seja por falta de coragem, de vontade política ou qualquer outro motivo, o fato é que o país não se esforça para promover políticas públicas de grande abrangência e eficiência para resgatar a sua própria memória. E é especificamente a resistência a essa invariável tentativa de se fazer com que tudo caia no esquecimento que é a razão de existir do Instituto Vladimir Herzog e de tantas outras entidades que atuam para preencher as lacunas existentes na História do Brasil e, assim, fortalecer os valores democráticos.

Por tudo isso, dia 31 de março é sim dia de ir às ruas. Não para comemorar; mas para homenagear as crianças que foram covardemente sequestradas, as mulheres que tiveram seus familiares assassinados e desaparecidos, os pais que viram seus filhos serem torturados e todos aqueles que lutaram bravamente – muitas vezes sacrificando a própria vida – contra a ditadura, em defesa da democracia e de uma sociedade mais justa e igualitária.

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