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Não vale tudo

A barbárie na busca desmedida do lucro encontra obstáculos na Constituição. O compromisso social das empresas com os direitos fundamentais é inegociável

Não vale tudo
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A dignidade humana não pode ser relativizada – Imagem: Marcel Crozet/ILO
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Recentes escândalos envolvendo grandes empresas brasileiras nos levam a tecer considerações relativas às missões sociais delas esperadas. Direitos fundamentais não são construções teóricas ou simples cortesias das grandes corporações. Muito além de equívocos contábeis ou de cegueira sobre práticas trabalhistas na cadeia produtiva terceirizada, a magnitude dos atos de administração empresarial que ganharam repercussão mais recentemente no Brasil demanda que resgatemos lições que parecem esquecidas ou relegadas ao plano do voluntarismo empresarial.
A atividade econômica, ainda que aparente se sujeitar meramente às regras de livre-mercado e aos interesses egoísticos da iniciativa privada, deve ater-se aos direitos fundamentais a todos garantidos pelo Direito e, em especial, por nossa Constituição. O Direito, em nome de ­determinados valores coletivos inegociáveis, é o elemento responsável pela demarcação das condições e possibilidades das relações econômicas e sociais.

Não por acaso a ordem econômica é, dentre outros, fundada nos princípios da livre-iniciativa, da propriedade privada e da concorrência. Aos referidos princípios se somam o da função social da propriedade e o da redução das desigualdades sociais. Ademais, são fundamentos da nossa República os valores sociais do trabalho, o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e da marginalização e, ainda, a redução das desigualdades.

A projeção da liberdade individual no plano da produção e de apropriação privada não é, portanto, incondicionada. É teleologicamente instrumentalizada. As empresas não podem se constituir em instrumentos do capitalismo selvagem, no qual tudo é válido em nome do lucro, da trapaça aos acionistas e da exploração do trabalho em condições análogas à escravidão. A barbárie na busca desmedida do lucro encontra obstáculos na Constituição.
O compromisso corporativo com a ética nas relações com parceiros, investidores, colaboradores e consumidores é peça-chave para o desenvolvimento social e econômico. Destaque-se, por exemplo, ser obrigação das empresas de capital aberto revelar, de forma contínua e independentemente de provocação, o estado dos seus negócios, isso em nome da própria estabilidade do mercado de capitais.

O dever de transparência visa assegurar, através da publicidade, que informações cheguem aos acionistas e ao mercado em geral, para que eles possam avaliar a situação dos negócios da companhia e deliberem, em condições adequadas, entre alocar ou realocar recursos.

Outro aspecto que se coloca é que não se sujeitam a qualquer voluntarismo empresarial o dever de inclusão e diversidade, a vedação à exploração do trabalho escravo e, ainda, a proteção ao mercado de trabalho das pessoas com deficiência e da mulher. O compromisso social das empresas brasileiras com os direitos fundamentais é inegociável.
Os direitos fundamentais previstos na Constituição não devem ser assegurados apenas pelos Poderes Públicos, mas igualmente pelas empresas. Trata-se da chamada eficácia dos direitos fundamentais entre terceiros ou, mais adequadamente, da eficácia horizontal deles nas relações privadas.

Devem ser reprimidos atos empresariais que, em busca do lucro desmedido, afrontam a dignidade dos trabalhadores e o pacto social. Os direitos fundamentais e sociais, amplamente reconhecidos pelo Direito Internacional e pela legislação brasileira, constitucional e infraconstitucional, pressupõem equidade e dignidade nas ­suas acepções plenas, não se constituindo uma faculdade das companhias brasileiras. •

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não vale tudo’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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