Justiça

Não há Damares que vêm para o bem

Em outros tempos, teríamos esperanças no Supremo. Mas nos Dias Toffoli que correm, sei não.

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Na primeira quinzena de governo, os mais perplexos ainda se perguntam se o que estamos vendo corresponde à realidade ou algo maior e mais engenhoso se desenha por trás, em uma necessidade da existência de um plano maior e mais ambicioso, algo genial e ao mesmo tempo simples, que desse um sentido lógico a esse espetáculo delirante que tem sido acompanhar a estreia desse (des)governo.

Declarações homofóbicas de um primarismo que talvez só se tivesse como possível nos primórdios do século passado. Por mais que se tente elencar as máximas imbecis de Suas Excelências, estaremos sempre desatualizados, porque haverão de dizer algo mais idiota no instante seguinte a da última fala idiota.

Esqueçam: não há Damares que vem para bem.

Seu super-ministério enfeixa praticamente tudo o que a vida cotidiana acarreta para as pessoas comuns. Em outras palavras, se a Paulo Guedes, o Homem-Aranha da economia, caberá nosso inferno com o neo-liberalismo mais agudo de que se tem notícia, caberá a Damares infernizar-nos no dia a dia, nas relações familiares e sociais, na desproteção dos vulneráveis que habitam nossas afetividades. Sofreremos muito porque nossos filhos estão namorando ou não estão, estão em festas e podem viver relações homoafetivas, que lutou-se por décadas para que fossem respeitadas, uma vez que nos bastaria celebrar o amor, não o amor oficial, religioso e aprovado por um Estado cada vez menos laico.

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Nas relações exteriores, um lunático messiânico, se encarrega de isolar o Brasil do resto do mundo. Logo, seremos considerados pelos outros países uma má companhia internacional.

Os horrores anunciados começam a ser praticados. E nenhum deles poderá ser mais danoso do que a liberação do porte de armas, hoje, celebrada pelo presidente. Quatro armas serão permitidas para cada “cidadão de bem”, é claro. Em uma análise infantilizada, vazia e beligerante, de responsabilidade pessoal do chefe do executivo, entendeu-se de propiciar ao cidadão os meios para exercitar sua “legítima defesa”. Da forma como se fez, Bolsonaro, na contramão mundial, terá, como ninguém antes, criado o caldo de cultura para explosão dos níveis de violência doméstica e comum. Vai permitir que se corra ainda mais sangue nas famílias brasileiras, essa uma que sua ministra diz proteger, com seus maniqueísmos doentes, sejam eles azuis ou rosas.

E, ainda, as armas

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O presidente conseguiu a proeza de deixar a todos inseguros. Teremos medo não apenas do ladrão, sociedade ordeira que somos, mas do vizinho de porta, que bebe e fica valente. Vamos ter medo do motorista de taxi, que vai ter medo do motorista de UBER, que vai ter medo do entregador de pizza, que vai ter medo do porteiro do prédio, que vai ter medo morador, nosso vizinho, uma vez que todos poderão estar armados e cheios de razão.

As mulheres, ah, Ministra Damares, as mulheres, estarão muitas com seus corações na boca, a cada vez que seus maridos, corregedores gerais da família, estiverem com um pouco suficiente de álcool no sangue e muita autoridade no peito, cada qual podendo dar-lhes até quarenta tiros, para que nunca mais a comida atrase, o filho caçula continue chorando ou que a cerveja esteja indesculpavelmente quente ou que ela se recuse a manter relações sexuais, ora essa.

As nossas filhas terão, finalmente, que obedecer a seus namorados, sarados e armados. Devem obsequiosa devoção a quem estiver de pistola na cinta, no jantar romântico.

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Para os mais melancólicos, a proximidade de arma de fogo pode significar o suicídio, nesses ímpetos de desesperança e desespero que todos nós possuímos.

Este Governo começa abrindo as portas para que saiamos a contar os mortos da semana, não mais apenas nos confrontos super-estimulados, entre policiais e criminosos. Contaremos as mortes dos  “cidadãos de bem”. Os sanguinolentos programas vespertinos não vão dar conta.

Este Governo, tão crédulo a Deus, não crê no óbvio: as armas de fogo se constituem em engenho humano, cuja única finalidade é a eliminar seres humanos. Ou alguém conhece quem acenda uma churrasqueira, com um disparo de calibre 12 no carvão?

A questão que me atormenta é que isso se deu nos primeiros quinze dias de outros mil, quatrocentos e vinte e cinco que estão por vir. Se não houve freio para conter mortes, haveria freios para conter desmatamentos, corte de direitos fundamentais, haveria freios para tentar reduzir nossa maior vergonha, que é a brutal diferença de renda?

Sei que boa parte dos leitores e das leitoras dessa seção e que votaram no eleito, começam a ficar ressabiados, como se houvessem caído no Conto do Mito. Caíram. Em outros tempos, teríamos esperanças no Supremo. Mas nos Dias Toffoli que correm, sei não. A sensação é a de que vale tudo.

Vale?

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

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