Drauzio Varella

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Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

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Não existe poção mágica

Novos medicamentos podem auxiliar no emagrecimento com poucos efeitos colaterais, mas ainda restam algumas incertezas

Foto: IstockPhoto
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Uma nova classe de medicamentos deve revolucionar o tratamento da obesidade, com poucos efeitos indesejáveis. Essas drogas mimetizam hormônios classificados como incretinas, que têm entre suas ações a redução do apetite e das taxas de glicose no sangue. No início dos anos 1990, o geneticista molecular Jeffrey Friedman procurava o gene defeituoso que pudesse explicar por que certos camundongos de seu laboratório comiam até se tornarem obesos. Em 1994, o gene foi identificado: era o responsável pela codificação da leptina, hormônio produzido pelo tecido adiposo, que induz à sensação de plenitude depois da refeição. A administração de leptina para os camundongos obesos provocava diminuição da fome e do peso corpóreo.

A descoberta criou as bases biológicas do controle do apetite e da obesidade, condição tradicionalmente atribuída à gula e à preguiça. A revelação da leptina deu origem a uma enxurrada de pesquisas sobre os mecanismos envolvidos no controle do apetite, da saciedade e do peso. Sempre atenta às oportunidades, a indústria farmacêutica investiu grandes somas na busca de novas drogas. Os resultados foram decepcionantes.

Antes da leptina já havia interesse em se conhecerem hormônios capazes de regular a glicemia em pessoas com diabetes. Os estudos conduziram ao GLP-1, hormônio capaz de aumentar a produção de insulina e de reduzir as taxas de glicose, características que o tornaram indicado para os casos de diabetes do tipo 2 e de obesidade. Nos anos 2000, a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA aprovou os primeiros compostos que mimetizam as ações do GLP-1 no controle do diabetes do tipo 2. Nos ensaios clínicos ficou documentado que os participantes também perdiam peso, graças à atividade dessas drogas nos receptores cerebrais que regulam o apetite e nos receptores existentes no intestino, que retardam a digestão quando estimulados. Daí a testá-los para a obesidade foi um passo.

Na metade dos anos 2010, foi desenvolvida a liraglutida, que nos ensaios clínicos reduziu 8% do peso corpóreo das pessoas tratadas, enquanto os participantes que receberam placebo perderam apenas 3%. No início de 2021, um estudo fase III realizado para testar a semaglutida, mostrou que os participantes tratados com uma injeção mensal perderam, em média, 14,9% da massa corpórea, enquanto o grupo-placebo perdeu, em média, 2,4%. Baseados nesses resultados, os técnicos do FDA aprovaram a semaglutida para tratar a obesidade em adultos.

Outra droga da mesma classe, a tirzepatida, parece ainda mais eficaz, porque não age apenas nos receptores ­GLP-1, mas também em receptores de outro hormônio envolvido na secreção de insulina, o GIP. No ensaio clínico que justificou sua aprovação pela FDA, os participantes que receberam uma injeção mensal por 16 meses perderam, em média, 21% do peso, enquanto no grupo-placebo a redução foi de apenas 3%. O emagrecimento parece ser menos pronunciado nos que sofrem de diabetes.

Dispor de medicamentos capazes de obter perdas de peso pouco abaixo dos resultados das cirurgias bariátricas é um grande avanço no tratamento clínico da obesidade. Mas há problemas: 1. Numa sociedade que atribui à magreza um valor estético, será possível evitar o abuso dessas drogas por pessoas com poucos quilos acima do que gostariam? 2. A disponibilidade desses medicamentos não fará que todos aqueles com IMC na faixa de obesidade sejam candidatos ao tratamento? Não vamos esquecer que cerca de 30% das pessoas obesas são metabolicamente saudáveis. Outros problemas de saúde aumentam mais o risco de morte do que o peso excessivo. 3. Efeitos colaterais da medicação, como náuseas e vômitos, podem piorar a qualidade de vida de quem já sofre com a obesidade. 4. Embora aprovadas pela Anvisa, há o problema do preço exorbitante: nos EUA, uma ampola mensal de semaglutida sai a 1,3 mil dólares. Quanto custará por aqui? Quantos terão acesso? O SUS terá recursos? 5. As injeções mensais deverão ser mantidas por quanto tempo? Pela vida inteira? Uma vez medicadas, as pessoas não deixarão de lado as atividades físicas e os cuidados com a alimentação?

Apesar dessas incertezas, finalmente entramos na era da abordagem farmacológica da obesidade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Não existe poção mágica”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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