Diversidade
Não existe LGB sem T
Sob o pretexto de “resgatar o foco nas questões homossexuais”, a tentativa de separar o “LGB” do “T” tem como objetivo real apagar as travestis, homens e mulheres trans do campo das políticas públicas e dos direitos humanos.
Peço perdão por começar este texto evocando Harry Potter, parte significativa da infância e adolescência de tanta gente da minha geração. Mas é necessário reconhecer que a autora da saga, J.K. Rowling, vem financiando iniciativas que sustentam uma cruzada contra pessoas trans. Seu Women’s Fund destina recursos a grupos que “defendem o sexo biológico” como critério para acesso a espaços femininos, o que, na prática, exclui travestis e homens e mulheres trans. Quando soube disso, senti o incômodo ético de quem se pergunta: quantas vezes, sem perceber, financiamos o ódio?
Como sociedade, estamos diante de um espelho desconfortável. E nele, o que se reflete é o velho truque da direita: dividir para conquistar. A tentativa de separar o “LGB” do “T” não é inocente. É uma estratégia política, importada de iniciativas como a LGB Alliance, nascida no Reino Unido, presente hoje em 14 países e com ecos perigosos no Brasil, vergonhosamente o único da América Latina onde o movimento excludente conseguiu base organizada. Sob o pretexto de “resgatar o foco nas questões homossexuais”, seu objetivo real é apagar as travestis, homens e mulheres trans do campo das políticas públicas e dos direitos humanos.
Mas é preciso dizer em alto e bom som: sem o T, não há orgulho, como afirma recente campanha da ABGLT.
O movimento LGBT+ começa com uma travesti e permanecerá!
Foi Marsha P. Johnson, travesti negra estadunidense, quem arremessou o primeiro tijolo em Stonewall. Foi dela, e de tantas outras, o gesto que fundou a rebeldia e a esperança que nos trouxeram até aqui.
Retirar o T é apagar a história e trair o princípio básico da luta: ninguém fica para trás.
Durante a 4ª Conferência Nacional LGBT+, o Brasil reafirmou esse compromisso. Nenhuma tese contrária às pessoas trans foi aceita, e o encontro aprovou o apoio à criação de cotas trans em políticas públicas, universidades e espaços de poder. Foi um marco político e simbólico: reconhecer que a exclusão histórica de travestis, mulheres e homens trans não se resolve com boas intenções, mas com justiça e reparação.
É nesse contexto que nomes como Symmy Larrat, primeira travesti a comandar a Secretaria Nacional LGBTQIA+; Bruna Benevides, presidenta da ANTRA e voz firme na defesa das cotas; e Keila Simpson, ativista histórica que não cansa de afirmar “sou travesti e não aceito ser apagada”, tornam-se faróis dessa travessia. Não nos esqueçamos também da presença politicamente organizada de homens trans e pessoas transmasculinas, que ocuparam em grande número a Conferência, como o Presidente do IBRAT Fabían Algarte e o Coordenador da Liga Transmasculina João W. Nery, o ativista Gab Van. Vale destacar que a liga homenageia o maior ícone da luta transmasculina no Brasil, in memoriam. Juntos/as, elas e eles seguem abrindo caminho diante de uma sociedade que ainda insiste em duvidar de suas capacidades.
A impossibilidade de pensar ou construir um movimento LGB dissociado do T, inclusive, também pautou a Conferência Nacional. A despeito dos “cochichos” que defendiam essa ideia aqui e ali nos corredores, o que foi ovacionado em plenária foi a exibição da campanha “#ImpossivelLGBsemT”, idealizada pela Associação Baiana de Travestis, Transexuais e Transgêneros em Ação – Atração, que mostrou didaticamente, em 1 minuto e 30 segundos e com falas e rostos de 6 jovens influencers trans de Salvador aquilo que, para nós, já deveria ser óbvio: É impossível LGB sem T. A campanha, disponível na página da Atração e de grandes redes como ANTRA, ABGLT e IBRAT pode ser vista neste link: https://www.instagram.com/p/DQIDO3bkrMc/
Como psicólogo, vejo nesses ataques mais do que política: vejo recalque. No sentido psicanalítico, recalque é o esforço de negar aquilo que nos desafia, a existência trans desestabiliza o sistema de gênero que muitos ainda tomam como natural. O ódio, portanto, é sintoma de medo: medo de reconhecer que o mundo é mais amplo e múltiplo do que a norma cisgênera permite suportar.
Por isso afirmo: organizações, empresas e ONGs que violam direitos trans não podem receber isenções fiscais nem benefícios públicos. Não há neutralidade possível diante da discriminação, transfobia, no Brasil, é crime. Quem exclui, desumaniza; e quem se cala, consente, já diziam os mais velhos.
Direitos humanos não são buffet: não se escolhe a quem servir. A opressão não se hierarquiza. O mesmo sistema que oprime mulheres, pessoas negras, indígenas e pobres é o que assassina travestis e homens trans nas esquinas do país. O Brasil segue liderando o vergonhoso ranking mundial de assassinatos de pessoas trans, segundo dados da Antra, um retrato do ódio e da impunidade camuflados de normalidade.
É hora de relembrar a genealogia da nossa luta. O orgulho LGBTQIA+ nasceu com uma travesti, se fortaleceu com mulheres trans e se reinventou com os homens trans. Retirar o “T” é amputar o próprio coração do movimento. E como país, como militância e como campo progressista, precisamos reafirmar com coragem e ternura: é impossível LGB sem T!
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