Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

Não é hora de fazer o jogo da direita

A agenda educacional das elites é prosseguir de onde pararam com Temer. E nós? Vamos seguir repetindo que ‘agora não é hora para criticar’?

O CCBB é a sede do governo de transição. Créditos: Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil.
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“Militante, descansa um pouquinho (…) não temos como não construir pontes”. Foi essa a reprimenda que recebi de um tuiteiro quando divulguei os nomes das pessoas que, no último dia 8, se reuniram com Fernando Haddad como colaboradores voluntários do GT de Educação ligado à equipe de transição para o próximo governo Lula. Junto à lista com 48 nomes, acrescentei o singelo comentário de que havia na reunião uma quantidade desproporcional de pessoas vinculadas a bancos e fundações empresariais mantidas por bilionários.

Tal desequilíbrio de forças, que pende para atores sociais com enorme poder econômico e minúscula representatividade social, é um fato diretamente verificável. Considerando vínculos indiretos – isto é, pessoas que assessoram, que têm seus projetos financiados ou que circulam nos espaços dessas organizações privadas –, a maioria esmagadora das pessoas reunidas no GT tem alguma relação com fundações educacionais empresariais.

Embora seja natural que uma equipe de transição divulgue a lista nominal das pessoas envolvidas no trabalho – inclusive como forma de sinalizar à sociedade que o mandato eleito está comprometido com o projeto societário consagrado pelo escrutínio popular –, a divulgação da lista parece ter sido recebida pelos organizadores do encontro como um constrangedor vazamento. Aparentemente, eles não tinham a intenção de divulgar os nomes dos escolhidos.

Embora os que acompanham mais de perto as políticas educacionais no Brasil não tenham ficado lá muito surpresos com a composição do grupo, muita gente da educação estranhou a presença massiva na lista de think tanks desconhecidos e de fundações empresariais sediadas em São Paulo. Afinal, a tão incensada frente ampla que caracterizou a campanha e a vitória da candidatura Lula-Alckmin também incluiu um campo popular imenso e interessado no debate educacional. Um campo popular que, aliás, influenciou toda a legislação educacional brasileira produzida entre a redemocratização e o golpe de 2016.

O GT é composto majoritariamente por pessoas que trabalharam na burocracia do MEC nos governos petistas e por representantes de elites interessadas em ditar as políticas públicas para a educação dos pobres. Nos interstícios do grupo principal situam-se algumas pessoas historicamente vinculadas às agendas educacionais do campo popular e outras ao debate educacional interno do PT. A ausência de sindicatos, entidades representativas estudantis e associações científicas da educação é patente.

Uma nota da Coordenação Nacional do Setorial de Educação do PT, assinada por Teresa Leitão (senadora eleita por Pernambuco) e divulgada depois da reunião, registrou a apresentação do nome de Heleno Araújo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e presidente do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE), para o GT. De resto, a nota só confirmou a tímida participação do campo popular em comparação às elites representadas pelas fundações empresariais e seus apêndices.

Para citar apenas um exemplo da injustiça: o FNPE, criado após o esvaziamento político do Fórum Nacional de Educação pelo governo Temer, foi peça-chave na mobilização popular da educação durante a prisão arbitrária de Lula. Dele participam 45 entidades com representatividade nacional, entre associações científicas, movimentos sociais de massa com atuação educacional, centrais sindicais e movimentos históricos de defesa de agendas educacionais setoriais. Considerando que uma organização irrelevante como o obscuro “Movimento Profissão Docente” (paradouro de ex-integrantes da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo sustentado por Fundação Lemann, Itaú Social, Instituto Natura, Instituto Península e Instituto Unibanco) enviou dois representantes para a reunião da transição, é um absurdo que as entidades reunidas no FNPE não estejam minimamente representadas no GT que vai produzir o diagnóstico e as primeiras diretrizes da educação para o governo eleito.

Logo após a saraivada de críticas à composição da lista de convidados para a reunião que deflagrou os trabalhos do GT, começaram a circular vídeos e notas afirmando que “todas” as entidades representativas da educação serão ouvidas, que todos foram chamados a participar do processo, que serão feitas outras reuniões etc. etc. É o recibo de que o barco da transição na educação definitivamente deriva para a direita empresarial, como Rodrigo Ratier observou.

Embora as frações do campo empresarial ligadas às fundações tenham saído “vencedoras” ao lado de Lula-Alckmin, o projeto societário antipovo de Temer e Bolsonaro, encarnado por esse mesmo grupo, foi fragorosamente derrotado nas urnas. Eis a contradição da frente ampla: a verdadeira massa votante que sagrou a vitória da democracia no Brasil quer ver seus direitos garantidos no orçamento público – incluindo o direito social à educação. Só que isso colide com os interesses dos que almejam que o futuro governo Lula faça uma “sinalização ao mercado” torpedeando direitos sociais.

A despeito das muitas especulações sobre o conteúdo da reunião do dia 8, Daniel Cara resumiu a agenda prioritária em dois pontos: 1) conceber a educação de forma sistêmica – da creche à pós-graduação; e 2) retomar o Plano Nacional de Educação (PNE) como baliza das políticas educacionais do país. Segundo Cara, um dos raros participantes do GT a antagonizar publicamente com o empresariado educacional, todo o restante do que circulou na imprensa deriva de impressões pessoais dos participantes da reunião ou de conteúdos já explicitados no programa eleitoral da chapa Lula-Alckmin: garantir recursos para uma merenda escolar digna, recompor o orçamento das universidades e institutos federais, recuperar as perdas de aprendizagem causadas pela pandemia, reconstituir a burocracia do MEC desmontada por Bolsonaro etc.

A reversão das políticas regressivas encampadas pelo atual governo – militarização escolar, estímulo à educação domiciliar, políticas de alfabetização não respaldadas em evidências científicas, clientelismo no FNDE – parece ser consensual entre os participantes do GT. Resta o dissenso quanto às reformas educacionais neoliberais, defendidas pelo empresariado e combatidas pelo campo educacional. Dissenso relativo, evidentemente. De um grupo em que predominam pessoas alinhadas às políticas de Temer não se pode esperar oposição à grande política educacional antipovo do governo golpista: a Reforma do Ensino Médio.

A agenda educacional das elites

Entusiasta maior da Reforma do Ensino Médio, a coalizão empresarial conhecida como Movimento pela Base está presente no GT através de diversos membros de seu conselho consultivo e de suas organizações mantenedoras e parceiras: Fundação Lemann, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Itaú Educação e Trabalho, Cenpec, D3e, FGV Ceipe, Instituto Singularidades, Instituto Sonho Grande e Todos pela Educação. Dos 48 participantes identificados na lista de participantes da reunião, 18 (37,5%) são vinculados de maneira direta a dez organizações privadas associadas ao Movimento pela Base.

No dia das eleições, a coalizão lançou uma nota pública declarando a expectativa de que os mandatários eleitos sigam comprometidos com a continuidade, a implementação adequada e o aprimoramento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Novo Ensino Médio (NEM), “políticas tão estruturantes para a educação”. O recado é uma resposta a dois amplos movimentos recentes de rechaço à Reforma do Ensino Médio: 1) a divulgação de uma carta aberta pela revogação da reforma assinada por 282 sindicatos, entidades representativas, grupos de pesquisa, associações científicas e movimentos sociais (a maioria representados no FNPE); e 2) a subscrição de mais de 300 candidaturas eleitas em 2022 à Carta Compromisso com o Direito à Educação nas Eleições 2022 elaborada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, e que também defende abertamente a revogação da Reforma do Ensino Médio.

A grande agenda educacional das elites nacionais é prosseguir exatamente de onde pararam no governo de Michel Temer, uma vez que o governo Bolsonaro lhes bateu com a porta na cara. (Não custa lembrar que em 2018, no segundo turno das eleições entre Haddad e Bolsonaro, fundações como a Lemann preferiram adotar uma postura de neutralidade – no reino dos que sempre se alinham com quem governa, as escolhas são sempre muito difíceis).

Apesar de os dados públicos já disponíveis sobre a implementação do NEM confirmarem a previsão de pesquisadores e profissionais da educação de que a reforma não é capaz de produzir outra coisa além do aprofundamento das desigualdades educacionais no país, as elites não estão dispostas a renunciar à crença inquebrantável na redenção das mazelas educacionais do país via reformas curriculares que barateiam a educação pública e vedam o acesso dos mais pobres ao conhecimento.

Embora muita gente na esquerda já tenha capitulado aos reformadores empresariais na pauta da revogação do NEM, insisto que não é possível “aperfeiçoar” uma reforma educacional que promete liberdade irrestrita de escolha, qualificação profissional universal e expansão de jornada escolar sem investir proporcionalmente na ampliação física das redes escolares (inclusive de escolas técnicas), na valorização dos profissionais da educação e em uma política estrutural de permanência estudantil na educação básica.

Não estamos em 2003

Quando o tuiteiro ralha com quem faz a justa advertência política com frases como “agora não é hora para criticar” ou “você está fazendo o jogo da direita” – repetindo fórmulas de desmobilização do debate político acionadas pela esquerda em 2003, quando Lula assumiu a presidência pela primeira vez –, ele contraria o conselho do próprio presidente eleito em 2022. Lula não é sempre o primeiro a dizer que a democracia não é só uma palavra bonita escrita na lei? Ela é, em suas próprias palavras, “algo palpável, que sentimos na pele e que podemos construir no dia a dia” (30 out. 2022). O presidente Lula, que não é nada ingênuo quanto aos limites práticos da frente ampla que o elegeu, entende a disputa como sendo constitutiva da política e do político.

Portanto, em qualquer país com um debate público saudável e que não encare a democracia como abstração, toda hora é hora para criticar. A suspensão das rivalidades no seio da frente ampla perdeu a validade às 19:57 do dia 30 de outubro de 2022. Às 19:58, a direita empresarial retomou o seu jogo antipopular e desmobilizante de sempre, enquanto parte da esquerda reluta mais uma vez em disputar com receio de que as cisões internas sejam percebidas externamente como o esgarçamento de uma aliança (que nunca existiu) entre as agendas populares e as do capital. A extrema-direita, por sua vez, está reorganizando as suas forças do lado de fora do tabuleiro, com uma parte do pessoal entoando louvores a pneus de caminhão e outra parte se preparando para reacender o pânico moral antigênero e antiesquerda nas escolas.

As agendas de Temer e Bolsonaro – repito – foram derrotadas na eleição. Lula já manifestou a intenção de recolocar o povo no orçamento público revogando a nefasta Emenda Constitucional n. 95 (Teto de Gastos), o que deveria incluir as três políticas antipovo que dela derivam: a Reforma da Previdência, a Reforma Trabalhista e a Reforma do Ensino Médio. Uma vez que não é possível esperar que Lula, num ato de justiça poética, vá baixar uma Medida Provisória (MP) sustando os efeitos da lei que instituiu a reforma (ela própria derivada de uma MP assinada por Temer), resta ao campo popular ocupar o lugar que lhe cabe nos processos de definição das políticas educacionais do país nos próximos anos. Agora, mais do que nunca, é preciso seguir os conselhos de Lula e não fazer o jogo da direita.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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