Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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Não consigo respirar

Genivaldo, assassinado dentro de uma viatura policial, tinha transtornos psíquicos e, assim como milhares de brasileiros, era negro e pobre

Foto: MAURO PIMENTEL / AFP
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O dia 26 de maio de 2022, em que um cidadão foi executado dentro de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF), transformada em câmara de gás, precisa despertar na sociedade brasileira uma onda de indignação e mobilização, tal qual o que se sucedeu nos Estados Unidos, quando George Floyd, também pobre, negro e trabalhador, foi assassinado por um policial em Minneapolis. Uma data para denunciar o horror como prática de Estado, marcar a luta por direitos e dar um basta à violência de Estado, que cada vez mais se normaliza no cotidiano, em rotineiras cenas de desrespeito aos cidadãos.

Genivaldo, 38 anos, casado, pai de dois filhos, foi parado para identificação por três policiais da PRF ao dirigir sua moto, sem capacete, em Sergipe. Um brasileiro comum que, ao ser abordado, se identifica e não está armado. Pobre, negro, trabalhador e com transtornos mentais, mostrou aos policiais a prescrição com os medicamentos que usava para o tratamento de esquizofrenia. Ainda assim, foi alvo de maus-tratos e de uma abordagem violenta dos agentes do Estado, documentada fartamente por muitos que ali estavam.

Foi algemado, atirado na parte traseira da viatura e asfixiado por uma bomba de gás lacrimogêneo, lançada no interior da viatura, propositalmente fechada para reproduzir uma “câmara de gás”. Os apelos dos presentes para que fosse interrompida a tortura não impediram a desvirtuada ação policial. Uma explícita manifestação do racismo estrutural e da opressão às pessoas economicamente pobres.

Tal qual Floyd, Genivaldo não podia respirar. Da mesma forma que os judeus, nos campos de concentração, levados às câmaras de gás por agentes de Estado, Genivaldo não conseguia respirar. E morreu. A causa mortis, segundo o IML, foi asfixia e insuficiência respiratória. Genivaldo foi executado. Sem meias palavras, assassinado por ação da PRF, que deveria agir para defender a vida dos cidadãos brasileiros.

Sou signatário de um documento, liderado pela Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e diversas outras entidades e autoridades, que reitera a necessidade de afirmar como inflexão o Estado Democrático e a garantia dos Direitos Humanos.

É fundamental defender um projeto civilizatório em que o cuidado com os cidadãos seja o principal eixo ético, que respeite a diversidade e o enfrentamento incansável da discriminação por raça, etnia, classe, credo ou orientação sexual. Em resumo, a todas as formas de opressão e exclusão.

O respeito à Constituição brasileira e suas instituições em cada ação cotidiana, e de forma exemplar, por aquelas que o representam e defendem, deve tomar sempre por base o artigo da Carta Maior que garante que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Temos de colocar em prática os ditames da Lei 12.847/13, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O Brasil é signatário do Protocolo de Istambul, que pressupõe ações efetivas dos Estados signatários voltadas ao combate a práticas degradantes, principalmente nas instituições de Estado.

As pessoas com transtornos mentais, historicamente vítimas de segregação, desrespeito e horrores, possuem seus direitos reafirmados pela Lei 10.216/11, que agrega aos demais marcos legais e pactuações de Defesa dos Direitos Humanos a fundamentação da necessidade de políticas públicas, práticas cotidianas, ações específicas especialmente voltadas para o fomento do respeito, desconstrução de estigmas e garantia de direitos de cidadania dessa população.

A violação dos direitos, que resultou no assassinato desse cidadão, não é expressão de um incidente individual. Trata-se de uma prática de Estado. É imperativo que a execução de ­Genivaldo seja rigorosamente apurada e os responsáveis, punidos.

Genivaldo tinha transtornos psíquicos, era negro e pobre, como milhares de outros brasileiros. As práticas policiais que se reproduzem em todo o País demonstram a ausência de protocolos de conduta, de formação pautada no respeito dos Direitos Humanos e perpetuam uma lógica pautada no extermínio, marcada por uma insana perseguição às populações vulnerabilizadas.

É preciso que as instituições envolvidas se posicionem, apurem as responsabilidades e punam a quem de direito. Ações efetivas devem ser tomadas por parte do nosso sistema de Justiça, pois é sua missão a defesa das garantias constitucionais. Mas é preciso, mais que nunca, unir a sociedade brasileira e exigir um basta à violência de Estado. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Não consigo respirar”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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