Alberto Villas

[email protected]

Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Não adianta, a gente não consegue mudar de assunto

Há mais de dois meses não vejo minhas filhas, meu filho, minha neta, meu neto, meus irmãos, meus sobrinhos, minhas amigas, meus amigos

Solidão em época de quarentena. Foto: Pxhere
Apoie Siga-nos no

Assunto 1
Há dois meses não vejo um japonês ao vivo. Um negro, uma criança, uma diarista, a caixa da Palácio dos Pães, um motorista de Uber, de ônibus, de van, a menina do Bradesco Prime com o colete Posso te ajudar? Há dois meses não vejo um cachorro ao vivo e em cores. Não vejo os buracos nas calçadas, guimbas de cigarro, idosos varrendo os alpendres dos sobradinhos da Lapa, os garis recolhendo folhas do outono na Praça Marechal.

Há dois meses não vejo um cobrador de ônibus cochilando, uma mocinha aflita gritando espera, motorista, que eu vou descer! Há dois meses não vejo as carambolas do sacolão da Lapa, o Severino na banca de jornal, o Sandro na portaria do meu prédio, os post-its coloridos na vitrine da Lapapel, os croissants da Fabrique, os carrinhos de frutas nas esquinas de Higienópolis.

Nunca mais vi um pombo ciscando farelo na porta do Bar e Lanches Souza, nunca mais vi um morador de rua recolhendo seus panos debaixo do viaduto Presidente João Goulart. Há dois meses não vejo uma escada rolante, uma revista Minha Novela dependurada na banca, um livro na livraria, uma Fanta Manga no Superville, uma camionete amarela da DHL, uma árvore caída depois do vendaval, um motorista falando ao celular, um farol quebrado, um engarrafamento, a maquininha de senha do laboratório de análises clínicas.

Há mais de dois meses não vejo minhas filhas, meu filho, minha neta, meu neto, meus irmãos, meus sobrinhos, minhas amigas, meus amigos, meu afilhado. Gente, onde foi parar o meu país?

Assunto 2
Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, daqui a pouco vai tocar o interfone, é o Sandro avisando que chegaram as compras do supermercado. Preguiça de colocar máscara e luvas, lavar com água e sabão cada laranja, cada poncã, cada limão, cada maçã. Preguiça de colocar os tomatinhos cereja na vasilha com água e Hidrosteril e depois enxugar um a um. Preguiça de passar álcool no pacote de macarrão, no litro de leite, no papel laminado do Ovomaltine.

Preguiça danada de limpar com álcool 70 a garrafa plástica de álcool 70, o tubo de Lysoclin, o pacote de Omo Total, embrulhar no papel filme o peito de peru light, rasgar a embalagem do queijo Minas light e jogar na pia o soro. Há muito anos, eu reclamava de colocar as compras do supermercado no lugar, arrumar tudo na despensa, organizar na geladeira, abrir com cuidado o isopor dos ovos pra não quebrar.

Um dia, a Paulinha me chamou a atenção, dizendo que ela tinha um sentimento contrário ao meu. Sentia a maior felicidade de ver aquela bagunça na cozinha e, aos poucos, cada coisa no seu lugar. Abrir e ver a geladeira cheia, as prateleiras com as compras, os vidros cheios de arroz, feijão, lentilha, polenta, trigo para quibe, canjiquinha, açúcar mascavo, café. E que devíamos agradecer a Deus por termos alimento para todos aqui na nossa casa. Eu estava só brincando quando comecei a escrever isso aqui. Não vejo a hora do Sandro tocar o interfone.

Assunto 3
A mesa impecavelmente arrumada é herança dele, meu pai. Eram outros tempos, havia em cima dela uma máquina Remington, um bloquinho de papel, uma caneta Parker 51, tinteiro, mata-borrão, grampeador, furador, clips e elásticos que, em Minas, chamamos de gominha. Havia também um lápis Johann Faber número 2 e um apontador, uma tesourinha, uma régua e um compasso, tudo minuciosamente nos lugares.

É com esta lembrança que começo mais um dia de pandemia. Os hospitais transbordando, médicos correndo pra lá e pra cá, aparelhos apitando, piscando em verde, amarelo e vermelho. Máscaras, luvas, roupas de plástico, protetores de acrílico, verdadeiros astronautas cujas vidas ultrapassam em qualquer coisa que eu faço. Os rostos marcados pelo elástico e um Nobel da Paz para todos eles, sem discussão. Enfermeiros, enfermeiras, técnicos, motoristas, faxineiros. A tensão maior não durou apenas uns poucos dias, há três meses que as duas torres gêmeas desabam todos os dias. Nas ruas, não pode ter gente e tem. O comércio tem de estar fechado e está funcionando a meia porta. A máscara tem de cobrir a boca e o nariz e está cobrindo o queixo.

Precisamos de respiradores e estão acabando. Precisamos de leitos de UTI e estão lotados. Precisamos respirar e falta ar. Precisamos de um presidente da República e não temos. Será que a única coisa em ordem neste país é uma escrivaninha?

Assunto 4
Raulzito tinha razão. Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida, mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa. Eu devia estar contente
por ter conseguido tudo o que eu quis, mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado. Porque foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto “E daí?” Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar e eu não posso ficar aí parado.

Os meus projetos precisam andar e hoje, logo cedo, comecei a pesquisa para o projeto Iara, segredo guardado a sete chaves. Sinto que não vou sair desse confinamento tão cedo, respirando o ar venenoso de São Paulo, assassino e cruel. Sou um privilegiado de estar aqui. Enxergo lá fora um país que não tem governo e nunca terá, que não tem onde cair morto, quase Guayaquil. Isso veio à tona e deixou muitos de boca aberta. Uns fechando os olhos, outros sentados esperando a morte chegar. Eu não queria agradecer ao senhor e pedir a ele autorização para ir domingo ao zoológico dar pipocas aos macacos.

Discute-se na televisão se o mundo será o mesmo depois da covid-19. Sei que eu não posso mais ficar aqui a esperar. Preciso acabar logo com isso, preciso lembrar que eu existo. Preciso ouvir Raulzito e Erasmo Carlos também.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar