Opinião

Muito se fala do direito à vida, mas bem pouco sobre o direito à vida indígena

Com efeito, temos pouca consciência de cultura indígena, começando pelo nosso virtual desconhecimento das línguas nativas

.Foto: Thiago Gomes/Agência Pará
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“As artes produzidas pelos indígenas dialogam com as nossas cosmogonias.”
Kássia Borges Karajá.

Essa bela inferência sobre a arte indígena está em matéria de CartaCapital, de Ana Paula Sousa, a respeito da curadoria dos indígenas no Museu de Arte de São Paulo (MASP).

De fato, nossas concepções de como se formou o universo passam, em grande parte, pela visão de mundo e de vida dos indígenas.

Na referida matéria, Ana Paula cita Kássia Borges, mais uma vez: “Gosto da palavra estesia. Estesia é aquilo que mexe com você, que provoca sensações.”

A estesia também pode ser entendida como a sensibilidade para colher sinais, mensagens, indicações que outras pessoas, os animais, as plantas, a vida e a natureza nos deem.

De maneira sincrônica, CartaCapital traz texto de Sidarta Ribeiro sobre encontro que tivera com indígenas.

O neurologista relatou: “Ali pudemos refletir sobre a pandemia de sofrimento e sobre a repartição desigual da dor – a taxa de suicídios entre indígenas é três vezes maior que a média nacional.”

Na verdade, muito se fala do direito à vida, mas bem pouco sobre o direito à vida indígena, com suas cosmovisões ímpares, introjetadas por nós, sem sequer nos darmos conta.

Com efeito, temos pouca consciência de cultura indígena, começando pelo nosso virtual desconhecimento das línguas nativas.

Mas como não cair em depressão se não conseguimos entender os significados, o primeiro deles, o da própria vida?

Em “Um sentido para a vida” (editora Ideias Letras), Viktor Frankl cita Wolfgang Loch, para o qual: “O diálogo psicanalítico é essencialmente um esforço para criar um novo significado para a vida.”

Destarte, estar abertos à estesia permite habilitar-se a ler a realidade, em toda a sua complexidade, buscando entender os sinais e lendo-os como componentes de uma linguagem que nos faculte entender o significado da vida – das nossas próprias vidas – nossos dons e responsabilidades deles decorrentes.

Em “Política Selvagem” (Glac Edições), de Jean Tible, ao citar Howard Zinn, o autor nos recorda de verdade acolhida pelos Zapatistas: “…uma das trapaças dos de cima é convencer os de baixo de que tudo aquilo que não pode ser conquistado rápida e facilmente não será conquistado nunca. Tentam nos convencer de que as lutas longas e difíceis só cansam e não chegam a lugar nenhum.”

Na mesma obra, Tible faz interessante leitura da obra de Donna Haraway, observando: “…fazer movimento é potência de conhecer. O estudo é, assim, ‘prática intelectual comum’, em toda parte, o trabalho de pesquisa significando se engajar em processo coletivo, isto é, ‘cuidar de uma situação’. É impressionante a ‘experiência da leitura e da escritura’ dos envolvidos no levante dos malês. A repressão encontra grande quantidade de pranchetas de madeira (utilizadas para escrever) e também papel (muito caro na época), isso numa sociedade onde os brancos dominantes eram em grande medida a analfabetos.”

A leitura é libertadora.

A deputada federal Erika Kokay (PT/DF) apresentou projeto de remissão de pena pela leitura. Trata-se de excelente iniciativa, que pode permitir a formação de detentos, em massa.

Desse esforço, poderão participar professores, livreiros, livrarias e editoras, permitindo ainda ressocializar e diminuir a população carcerária brasileira, a terceira maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos da América e da China.

Na vaga da liberdade, no caso, coletiva, Jean também cita o poeta Aleksandr Block e nota que ele, durante a Revolução Russa de 1917: “…vibra com uma virada e um ‘milagre’, pois agora ‘nada é proibido’ e ‘quase tudo pode acontecer’. Muitas já não se adequam mais ao lugar que lhes era reservado: ‘todo bonde, toda fila, toda reunião de aldeia abrigava um debate político. Houve uma proliferação de festivais caóticos, de reencenações dos acontecimentos de fevereiro’. Era a Moscou de março de 1917, mas a cena se repete continuamente.” Isso nos lembra algo?

A propósito do verdadeiro caráter da igualdade, mas que também serve para a liberdade, sendo ambas gêmeas univitelinas, Jean Tible tem o cuidado de observar que: “a igualdade não deve ser um objetivo, mas sim se encarnar no percurso, nas ações concretas.”

Definindo ainda mais a liberdade, Tible busca inspiração no grande James Baldwin, para quem: “as pessoas são livres quando determinam seu destino.”

Trançando liberdade e cultura, Tible recorda que nas regras do então Partido das Panteras Negras: “…um dos pontos coloca a obrigatoriedade de cada liderança ler pelo menos duas horas por dia. Em seu período encarcerado em Norfolk, Malcolm (X), após momentos de intenso sofrimento e desespero, inspira-se e mergulha nos livros. Vai devorar Du Bois e outros clássicos do pensamento negro, obras sobre escravidão e comércio transatlântico, da narração de levantes afro-americanos (como o de Nat Turner na Virgínia em 1831) a filósofos como Kant e Nietzsche. Ele teria, também, se impressionado com Gandhi e sua luta contra os ingleses e com a brutalidade da Guerra do Ópio na China e vai chegar a dizer que ‘seria capaz de passar o resto da vida lendo’ e que ‘ninguém jamais ganhou tanto indo para a prisão’. Vai inclusive participar da Norfolk Debating Society e das competições de debates nas quais desafiam universidades prestigiosas. E Malcolm sai da cadeia formado como um ‘crítico penetrante dos valores e instituições brancos”, na citação de Phillip Foner.

Nas vésperas do Natal, busquemos a liberdade coletiva, o renascimento de amores e valores, a verdade unívoca das crianças, na complexidade dos adultos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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