Opinião

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Muito além do voto

A democracia foi constituída por um conjunto de lutas e conquistas de diferentes movimentos. Temos o dever moral, político e histórico de preservá-la

Precisamos defender o legado das sufragistas - Imagem: Arquivo/London School of Economics and Political Science
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Foi no século 6º a.C., com os legisladores atenienses Sólon e Clístenes, que nasceu a democracia. Seu surgimento se deu pela instituição da isonomia, que significa igualdade, conceito muito valioso até hoje para a política e o Direito. Séculos mais tarde, Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso nos trouxeram a teológica lição de que somos todos filhos do mesmo pai. Dotados, portanto, de uma dignidade que nos iguala.

Desde então, igualdade e liberdade se instituem como irmãs siamesas, não como conceitos em conflito. Se somos iguais entre nós, um não tem o direito de se apropriar do outro. Não há liberdade em uma sociedade desigual, e não há igualdade verdadeira em uma sociedade sem liberdade, dado que, se não há liberdade, alguns poucos desigualmente dominam os demais.

As revoluções Francesa, Americana e Inglesa estabeleceram pela primeira vez na modernidade um Estado democrático, mas no contexto de uma democracia ainda incipiente, primitiva e restrita, em que a cidadania, representada pelo direito de voto, no plano formal, somado ao direito a ter direitos, no plano material, só era exercida por homens brancos possuidores de renda ou patrimônio. Esse modelo de sociedade excluía mulheres, negros, trabalhadores.

A democracia universal, tal como conhecemos hoje, foi constituída por um conjunto de lutas e conquistas de diferentes movimentos. Primeiramente, deu-se pelo movimento dos trabalhadores nas jornadas de junho de 1848, em que, embora massacrados pela autocracia, foram lançados como figura política no mundo. Décadas depois, adquiriram seu direito a voto.

A eles sucederam as mulheres sufragistas, que também obtiveram o direito a voto e o de ter direitos. Os movimentos de luta contra a opressão e pelos direitos dos negros na América foram capitaneados pelas verves de Zumbi, Dandara, Malcolm X, Martin Luther King e Marielle Franco.

Da mesma forma, estão na trincheira de luta pela igualdade os indígenas e as comunidades LGBTQIA+, estas que mostraram ao mundo que a liberdade de expressão não deve ser apenas a liberdade de pensamento, mas também a liberdade de expressar afetos, sendo o mais precioso deles o amor. Afetos que não podem ser condenados a ficar presos nos armários de uma heteronormatividade autocrática.

Em 2 de outubro seremos os cristãos perseguidos pelos romanos, as mulheres mortas nas fogueiras da Inquisição. Seremos Zumbi e Dandara na luta pela igualdade racial

Todas essas lutas e tantas outras constituíram o que chamamos hoje de democracia e de direitos. Trata-se de um tesouro ainda insuficiente para uma sociedade justa, mas nem por isso menos precioso. Um tesouro amealhado não pela tinta no papel, mas pelo sangue nas calçadas do sacrifício dos nossos antepassados. Assim, juntamente com o direito de dele usufruir, vem a nós o dever de por ele lutar e transmiti-lo aos nossos sucessores, aos que vão nascer, aos meninos e às meninas dessa comunidade. É um dever de cidadania zelar pela sua preservação e possível ampliação e entregá-lo às novas gerações.

Portanto, na eleição que ocorrerá, além de um direito de todos nós no plano jurídico, votar pela democracia e pelos direitos é um dever moral, político, histórico. Tentar eleger Lula e Alckmin já no primeiro turno se apresenta como um dever não apenas da esquerda ou dos liberais, mas de todo homem e toda mulher que acredita que a decência, a dignidade e a solidariedade devam prevalecer como virtudes da vida humana.

Não são esses os valores encampados do outro lado, definitivamente. Temos presenciado o desdém pelos direitos humanos, um descaso perverso que fere os princípios mais básicos da civilidade e cujos efeitos nefastos atingem pessoas, instituições e o próprio meio ambiente, desorientando o rumo que nossa jovem democracia a muito custo havia encontrado, graças aos esforços das lutas dos movimentos sociais e de pouco mais de uma década de governos progressistas. É como se os agentes daninhos tivessem estacionado um tanque de guerra em meio ao fluxo de ideias e iniciativas que vínhamos experimentando, com o intuito de esmagar e impedir o seu florescimento.

Hoje eles podem ter as armas, a violência, toda a força que o mal traz, mas nossa potência ganha envergadura por estarmos acompanhados, no dia 2 de outubro, pelo espírito dos que já viveram e se sacrificaram e pelo espírito dos que vão viver. Seremos os cristãos perseguidos pelo Império Romano no início do Cristianismo, as mulheres mortas nas fogueiras da Inquisição, os revolucionários que tombaram pela transformação social, os gays e os transsexuais que lutaram pela igualdade. Seremos Zumbi e Dandara, Malcolm X, Martin Luther King e Marielle Franco em sua luta pela igualdade racial.

Seremos a memória de todas as mulheres que morrem todos os dias vítimas da violência de gênero, do machismo e da misoginia, e de todos os brasileiros que perderam a vida devido ao negacionismo de Bolsonaro durante a pandemia da ­Covid. Todas essas pessoas serão revividas no ato de eleger Lula e Alckmin, e vão se unir aos espíritos livres dos que esperam por uma sociedade mais igualitária.

Nós seremos muito mais que nós. E devemos encarar essa oportunidade como histórica, única, em que a luta pelo poder transcende e se transforma em luta pela justiça. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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