Drauzio Varella

drauzio@cartacapital.com.br

Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

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Drauzio: mortes causadas pela Covid podem ser o triplo das registradas oficialmente

Um estudo publicado pela revista ‘The Lancet’ mostra que teriam morrido até o fim do ano passado 18 milhões de pessoas

Drauzio: mortes causadas pela Covid podem ser o triplo das registradas oficialmente
Drauzio: mortes causadas pela Covid podem ser o triplo das registradas oficialmente
Foto: MARIO TAMA / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP
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O número total de óbitos causados pela Covid-19 pode ser muito maior do que a quantidade relatada nos registros oficiais. Até 31 de dezembro de 2021, os dados obtidos a partir de fontes oficiais calculavam que 5,9 milhões de pessoas tinham falecido por conta da pandemia do ­Sars-CoV-2 no mundo.

Sempre soubemos que esses números subestimavam o total de vítimas da pandemia, por não levarem em conta os óbitos que deixaram de ser comunicados às autoridades, por falta de diagnósticos precisos, de acesso à assistência médica e por dificuldades de comunicação e de controle centralizado em dezenas de países com infraestrutura precária de saúde. A revista The Lancet acaba de publicar o estudo mais completo sobre o tema, realizado pelo Institute for Health ­Metrics and Evaluation (IHME), de ­Seattle, no estado de Washington. O resultado foi surpreendente: até 31 de dezembro do ano passado, teriam morrido de Covid 18 milhões de pessoas, ou seja, o triplo do número citado nas contagens oficiais.

Para estimar números mais próximos da realidade, os autores partiram do que chamamos de “excesso de mortalidade”, um indicador calculado pela diferença entre o total de mortes por todas as causas ocorrido em um país ou região e o número de mortes esperadas para aquele período, com base nos dados dos anos anteriores.

Estudos prévios realizados na Holanda e na Suécia demonstraram que, durante a pandemia, as mortes em excesso numa determinada população são, na maioria das vezes, causadas pela Covid-19. As exceções ficam por conta das demais causas de óbito atribuídas a outras doenças, que podem ter ocorrido por falta de tratamento adequado em hospitais e unidades de saúde superlotadas por pacientes infectados pelo Sars-CoV-2, situação enfrentada por quase todos os países do mundo nas piores fases da pandemia.

O IHME coletou os dados em 74 países e territórios. As maiores estimativas de excesso de mortes foram documentadas nos países da região dos Andes: 512 mortes em excesso em cada 100 mil habitantes. No Leste Europeu, esse número foi de 345; na Europa Central, 316; nos países africanos situados abaixo do Deserto do Saara, 309; na América Latina, 274 em cada 100 mil habitantes.

As estimativas do IHME são as primeiras publicadas em revista de primeira linha, em que os estudos passam por revisões criteriosas realizadas pelo corpo editorial, que reúne os especialistas mais renomados. Análise semelhante está em andamento sob a direção da Organização Mundial da Saúde (OMS), mas ainda não foi publicada. Os resultados do IHME são semelhantes aos da revista inglesa The Economist, que também estimou em 18 milhões o número de óbitos por Covid-19 até o fim de 2021.

Embora o número final obtido no estudo organizado pela The Economist seja semelhante ao apresentado pelo IHME, as margens de erro falam a favor deste. Na publicação da The Economist, o intervalo de 95% de confiança foi de 12,6 milhões a 21 milhões, enquanto na estimativa do IMHE foi de 17,1 milhões a 19,6 milhões – portanto, com margem de erro bem menor.

É claro que estudos dessa natureza estão sujeitos a muitas críticas. Em entrevista à Nature, Ariel Karlinky, economista da Universidade de Jerusalém, em Israel, considera razoável o número total de 18 milhões de óbitos, mas estranha alguns dados. Por exemplo, no Japão teriam ocorrido 100 mil mortes em excesso, número mais de 6 vezes maior do que o das mortes contabilizadas nas estatísticas oficiais. É pouco provável que um país com serviços de saúde tão organizados tivesse deixado de contar tantos óbitos.

Se existem incertezas na contagem do número de mortes, imaginem a acurácia das estatísticas oficiais em relação ao número de pacientes infectados pelo vírus. Como controlar a prevalência de testes positivos realizados em todas as farmácias? E nos exames realizados em casa ou em reuniões sociais e de trabalho que testam os participantes ao entrar? E o caso dos que permanecem assintomáticos durante o processo infeccioso, condição em que a maioria nem chega a ser testada?

É muito importante sabermos quantas infecções novas e quantas mortes diárias o vírus ainda provoca. Sem esses números, mesmo que imprecisos, não há como implementar políticas públicas nem ter ideia dos perigos que cada um de nós precisa enfrentar. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mortalidade em excesso”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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