Justiça

Moro, nosso Dom Sebastião de araque

Notas sobre um discurso messiânico mal lido de teleprompter

Sérgio Moro (Foto: Lula Marques/AGPT)
Apoie Siga-nos no

Houve em Portugal um rei, Dom Sebastião, que desejava expandir o seu império para norte da África, lançando-se em guerra e combatendo os mouros em nome de Cristo. Já no Marrocos, na batalha de Alcácer-Quibir, os seus planos falharam e ele foi morto em combate no dia 4 de agosto de 1578, frustrando o desejo dos portugueses e submetendo Portugal ao domínio espanhol, como se temia.

O choque foi de uma tal maneira grave que “muitos portugueses rechaçaram, à época, a notícia da morte de Dom Sebastião, afirmando que ninguém vira o rei ser morto”. Mas, de toda maneira (e morto!), o rei virou lenda, passando-se a acreditar que ele havia sobrevivido e regressaria finalmente como um redentor do povo lusitano, restaurando a autonomia da coroa portuguesa.

Assim, ele “ganhou auras messiânicas e durante algum tempo apareceram vários ‘Sebastiãos’, em Portugal, na Espanha e na Itália. A crença portuguesa, porém, não se limitou ao continente europeu e, finalmente, chegou ao Brasil que, como colônia portuguesa, também esteve sob o domínio espanhol até o fim da União Ibérica, em 1640. Afinal, houve um rei — dizia um avô ou uma avó que ouvira de seus avós — que morrera querendo salvar uma nação. Ou melhor: houve um rei que, indo para uma batalha salvar a sua nação, em nome de Deus, contra os infiéis, não voltara, mas ainda voltará.

Lembrei do rei Dom Sebastião ao ouvir o ex-juiz Sergio Moro no discurso (medíocre e sebastianista) em que se lançou pré-candidato; fi-lo muito a contragosto porque, dentre outras coisas, ele fala pessimamente, tendo lido (mal) quase todo o texto em um teleprompter. No seu discurso (gasto) deu-se mais destaque ao combate à corrupção do que a outros temas, como a fome, o desemprego, a educação, a saúde, a inflação, etc.

Nos 50 minutos do seu palavreado insosso, o nosso Dom Sebastião tupiniquim citou 19 vezes as palavras corrupção ou anticorrupção. Nem sequer uma palavra sobre o julgamento no STF que o declarou suspeito e anulou os processos que envolviam o ex-presidente Lula. Nada, nem uma vírgula sequer, sobre o “maior escândalo da Justiça brasileira”, as denúncias reveladas pela Vaza Jato.

Disse ele, repetindo-se, desde e como sempre: “Precisamos falar sobre corrupção. Muitos me aconselharam a não falar sobre o assunto, mas isso é impossível. Meu nome sempre estará à disposição do povo brasileiro. Não fugirei dessa luta, embora saiba que será difícil.” E em um arroubo, quase em êxtase, disse que suas “únicas armas serão a verdade, a ciência e a justiça.”

Como um bom Dom Sebastião dos trópicos, deixou-se mostrar em imagens “marqueteadas”, com auras messiânicas, divinas e sebastianistas, caminhando em passos rijos pela Praça dos Três Poderes, sorrindo aquele sorriso forçado, mirando ora para o STF, ora para o Palácio do Planalto.

Seguindo um roteiro falso e com uma estampa caricata, ao estilo Ken Passeio, aquele boneco falsete dos anos 80, disse, como o outro messias já o fizera antes: “o Brasil não precisa de líderes que tenham voz bonita. O Brasil precisa de líderes que ouçam e atendam a voz do povo brasileiro.”

Ora, é preciso compreender que a corrupção “é uma forma particular de exercer influência: influência ilícita, ilegal e ilegítima. Amolda-se ao funcionamento de um sistema, em particular ao modo como se tomam as decisões e está também relacionada com a cultura das elites e das massas, acentuando-se com a existência de um sistema representativo imperfeito e com o acesso discriminatório ao poder de decisão.”

E criticar o sistema político não significa, muitíssimo antes, criminalizar a política ou os políticos, como se faz também hoje no Brasil. A política, seja em que sentido for tomada a palavra, é fundamental para a democracia. Afinal, “em nosso tempo, ao se pretender falar sobre política, é preciso começar por avaliar os preconceitos que todos temos contra a política – visto não sermos políticos profissionais”, como observa Arendt. Para ela, “no entanto, esses preconceitos não são juízos definitivos. Indicam que chegamos em uma situação na qual não sabemos – pelo menos ainda – nos mover politicamente. O perigo é a coisa política desaparecer do mundo.”

Por outro lado, um sistema econômico perverso e não igualitário, também como o nosso, produz, reproduz e facilita a corrupção. Mais do que o capitalismo sáfaro, falamos aqui de um seu aspecto que se costumou chamar de neoliberalismo, mais nocivo que o liberalismo. Acham que “se os homens simplesmente não se metessem a impedir o curso natural das coisas com seus projetos e seus planos, tudo iria da melhor maneira no melhor dos mundos. Esse curso natural consiste na ausência de todo obstáculo erguido ante a livre concorrência, e portanto de toda intervenção estatal para corrigir os eventuais efeitos indesejáveis dela.”

E o sistema jurídico? Pobre dele, ou quão ingênuo é, quando acredita poder dar cabo à corrupção. E, pior, quando rasga todas as regras do jogo (democrático, processual e constitucional) em nome do combate aos corruptos, estes que só se multiplicam na mesma razão em que se propagam as mazelas do sistema político e do sistema econômico.

Enfim, e ao final, como disse a pré-candidata à primeira-dama, “eu vejo uma coisa só.”

 

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo