Opinião

Moïse escapou do genocídio para vir a ser massacrado em uma nação que tenta reverter a recolonização

Vale notar que o jovem fugira do caos em que foi lançado seu país, a República Democrática do Congo, historicamente objeto da cobiça imperialista

Justiça por Moïse: Protesto em São Paulo, neste sábado 5 de fevereiro. Foto: Nelson Almeida/AFP
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“O fascismo não concebe a contra-revolução como uma empresa vulgar e policial, mas como uma empresa épica e heroica. Tese excessiva, tese incandescente, tese exorbitante…”
José Carlos Mariátegui

A citação acima encontra-se em Mariátegui – vida e obra, de Leila Escorsim (editora Expressão Popular).
Perplexos, assistimos no Brasil às mais violentas manifestações de fascismo, como o brutal assassinato do jovem Moïse Kabagambe, refugiado congolês que apenas reivindicava o salário dos dias trabalhados e por isso foi violentamente espancado e morto, a pauladas, em um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca.

As manifestações ocorridas no último sábado em todo o País, de denúncia e desagravo àquela selvageria, demonstraram a força vital da sociedade civil contra a ideologia de morte, racismo e xenofobia do fascismo brasileiro.

Vale notar que o jovem estrangeiro fugira do caos em que foi lançado seu país, a República Democrática do Congo, historicamente objeto da cobiça e do ódio imperialistas, por ser riquíssima e ter tentado livrar-se das garras dos colonialistas.

De fato, seu primeiro chefe de governo após a independência, Patrice Lumumba, foi brutalmente assassinado pelas potências coloniais, por ousar emancipar seu povo, política e socioeconomicamente.

Os horrores por que passara aquela população no período colonial foram objeto de relatório independente e de denúncia internacional, por parte do diplomata Roger Casement, irlandês de nascimento e alma, então a serviço do Império Britânico.

Em Solilóquio do Rei Leopoldo, o monarca da Bélgica que se apropriara de todo o Congo, um dos maiores escritores estadunidenses, Mark Twain, bem ilustra a raiva que os imperialistas nutriam pelas denúncias que fizera o cônsul inglês:

“É peculiar a forma como aquele cônsul age – aquele espião, aquele intrometido [Toma o panfleto Tratamento de Mulheres e Crianças no Estado do Congo; o que o Sr. Casement viu em 1903]. Apenas dois anos atrás! Introduzir aquela data ao público foi um pedaço de fria malícia. Teve por objetivo enfraquecer a segurança de meu oligopólio de imprensa, que assegurava aos leitores o fim das minhas severidades no Congo, as quais teriam cessado – e completamente – há anos atrás. Esse homem é cheio de ardis – aprecia-os, inveja-os, trata-os, acaricia-os, estabelece-os. Não é necessário dormitar sobre seu monótono relatório para ver isso; os meros subtítulos demonstram isso. [Lê] ‘Duzentas e quarenta pessoas, homens, mulheres e crianças, compelidos a suprir o governo com uma tonelada de alimentos cuidadosamente preparados por semana… Expedição contra um vilarejo inadimplente com fornecimentos compulsórios; resultado, assassinato de dezesseis pessoas; entre eles três mulheres e um menino de cinco anos. Dez, sequestrados, até o pagamento do resgate; entre eles, uma criança, que morreu durante a marcha…O homem branco disse a seus soldados: ‘Vocês só matam mulheres; vocês não conseguem matar homens. Vocês precisam provar que matam homens’. Assim, quando os soldados nos matam…então levam aos homens brancos, que dizem: ‘É verdade, vocês mataram homens’…Região devastada; população reduzida de 40.000 a 8.000′”.

O Solilóquio do genocida (o belga, não o nacional, embora similares) prossegue: “Um de meus críticos mais ferrenhos observa: ‘Outros dirigentes cristãos taxam seus povos, mas fornecem escolas, cortes de justiça, estradas, luz, água e proteção à vida e pertença; o Rei Leopoldo taxa sua nação roubada, mas não provê nada em retorno, além de fome, terror, dor, vergonha, cativeiro, mutilação e massacre”.

Foi desse genocídio que o jovem Moïse escapou, para vir a ser massacrado do outro lado do Atlântico, em uma nação que tenta reverter o processo de recolonização.

Fugira de um genocida, para vir a encontrar outro, com milícias não menos ferozes.

Mas que forte reação popular! Quanto somos gratos a ti, Moïse, por ter aberto esse mar vermelho, tinto do teu sangue, que pudemos atravessar, para mirar, sofrer e superar o ódio antigo do colonialismo, do racismo e da xenofobia.

Justamente sobre o preconceito, em O olhar, coletânea da editora Companhia das Letras, o embaixador Sergio Paulo Rouanet ensina, citando o filósofo enciclopedista franco-alemão, o Barão de Holbach: “A superstição e a tirania invadiram o mundo; fizeram dele um cárcere tenebroso, cujo silêncio só é perturbado pelos clamores da mentira, ou pelos soluços que a opressão arranca dos cativos que aprisiona. Sempre vigilantes, essas duas fúrias impedem a luz de abrir passagem em sua morada escura”.

O diplomata brasileiro observa então: “O preconceito é sempre concebido como um obstáculo, uma venda que inibe o olhar. Correlativamente, libertar-se do preconceito significa recuperar o direito ao olhar.”

Seguindo o raciocínio de Holbach, cita-o, mais uma vez, em complementação: “Afasta pois, ó ser inteligente, a venda que cobre tuas pálpebras; abre teus olhos à luz; serve-te do archote que a natureza te apresenta, para contemplar os vãos objetos que te perturbam o espírito. Chama a experiência a teu socorro; consulta tua razão; […] e breve verás que só o delírio criou os fantasmas que te inquietam.”

O ex-ministro da Cultura recorda ainda: “No final do Système de la Nature, Holbach dirige uma prece à Natureza, e às suas ‘filhas adoráveis’, a razão, a virtude e a verdade: ‘Uni, ó divindades propícias, vosso poder para submeter os corações. Bani de nosso espírito o erro, a perfídia, a inquietação; colocai em seu lugar a ciência, a bondade, a serenidade […] Fixai enfim nossos olhos, durante tanto tempo ofuscados ou cegos, sobre os objetos que devemos procurar. Afastai para sempre esses fantasmas hediondos e essas quimeras sedutoras que só servem para perder-nos.”

Que o nosso Moisés congolês, com sua morte, continue nos libertando das cadeias do medo, da injustiça e da opressão, para, libertos, irmos ao encontro da justiça, da paz e da liberdade, para o Brasil, o Congo e todo o mundo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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