Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Moïse e a dor, o luto que nunca cessa

‘Somos um povo ferido até a alma: pela violência, pelo silêncio e pela conivência dos que se beneficiam amplamente dessa sociedade marcada pelo racismo e pela barbárie’

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Na noite da quinta-feira 3, o jornal Folha de S.Paulo divulgou detalhes da morte do congolês Moïse Kabagambe, assassinado brutalmente no dia 24 de janeiro, em um quiosque da Barra da Tijuca, pouco depois de cobrar o pagamento que lhe era devido pelo seu trabalho.

Segundo a reportagem do jornal paulistano, o filho de dona Ivana Lay foi alvejado com 39 (39!) pauladas de taco de beisebol. Ele ficou inerte somente a partir da trigésima sexta, mas, não satisfeitos, os acusados pelo assassinato do jovem refugiado ainda desferiram mais três golpes. No laudo expedido pelo IML, ficou constatado que as sucessivas pancadas causaram traumatismo no tórax, com contusão pulmonar, levando Moïse à morte.

No lugar das palavras, sinto-me tomada pelo silêncio. O que dizer diante de tanta barbárie? Tudo é desumano, perverso, inaceitável, inominável. As condições precárias de trabalho a que Moïse fora submetido, a indiferença de testemunhas que nada fizeram diante da brutalidade a que assistiam, a leniência da polícia na apuração do caso, e talvez (talvez!) a pior parte desse episódio macabro: a reação dos suspeitos de terem cometido esse crime hediondo.

Em depoimento, Brendon afirmou aos policiais que “apenas segurou Moïsé, sem tê-lo estrangulado”. Disse ainda que “tem a consciência tranquila”. Aleson, também suspeito, relatou que “resolveu extravasar a raiva que estava sentindo” do ex-colega de trabalho.

Como bem lembrou o intelectual Muniz Sodré, o não reconhecimento da humanidade de Moïse Kabagambe, com a negação do direito à vida ao trabalhador congolês, não se trata de um caso isolado. A violência, os discursos dos supostos autores do crime fazem parte do que o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro chamou de “forma social escravista”, que mesmo após a assinatura da Lei Áurea ainda rege as relações sociais no Brasil. O ritual de imolação a que Moïse foi submetido é mais um resquício do nosso passado escravocrata que não passa.

Nessa “forma social escravista”, a desumanização incessante da população negra é parte do cotidiano do país. É como se no Brasil houvesse um salvo-conduto para humilhar, excluir, detratar, violentar negros. Prova disso são os crimes recentes que foram marcados pela barbárie.

Como esquecer de Cláudia Silva Ferreira, mulher negra e trabalhadora doméstica assassinada por policiais, com tiros à queima-roupa, e arrastada pelas ruas do Rio de Janeiro em uma viatura? É possível esquecer do músico Evaldo Rosa, morto ao ter o carro destruído por 80 tiros de fuzil disparados por soldados do Exército? E quem não se lembra daquele adolescente de 15 anos, também do Rio, que foi amarrado nu a um poste no bairro do Flamengo para ser agredido, tal qual ocorria nos pelourinhos durante a escravidão?

Na época, Rachel Sheherazade, então apresentadora do Jornal do SBT, ao comentar o caso, disse que “a atitude dos vingadores era até compreensível” e acrescentou: “Aos defensores dos direitos humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha. Faça um favor ao Brasil: adote um bandido!”. Ou seja, o garoto negro acabou condenado sumariamente pela jornalista – e rotulado de criminoso – sem que houvesse denúncia à polícia, muito menos um processo legal estabelecido.

Pouco mais de uma semana após o assassinato de Moïse Kabagambe, outro crime bárbaro motivado pelo racismo ganha o noticiário do país. Em São Gonçalo, município da Baixada Fluminense, Durval Teófilo Filho foi alvo de três tiros quando chegava em casa. Aurélio Alves Bezerra, sargento da Marinha e seu vizinho, é o autor dos disparos. Em depoimento, relatou que a ação se deu pelo fato de ter “confundido” Durval com um bandido.

Em meio a tanta brutalidade e descaso, em nós, negros, fica a incredulidade, o ódio, a revolta. Mas também a dor e o luto. Uma dor e um luto que nunca cessam. Como bem escreveu a educadora afro-americana bell hooks, somos um povo ferido até a alma: pela violência, pelo silêncio e pela conivência dos que se beneficiam amplamente dessa sociedade marcada pelo racismo e pela barbárie.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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