Elnara Negri

Livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP e pneumologista do Núcleo Avançado de Tórax do Hospital Sírio-Libanês

Opinião

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Mistério desvendado

Um novo estudo, publicado na revista Nature, identifica as células do tronco cerebral responsáveis pelas respostas autoimunes do nosso corpo

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Desde os primórdios das civilizações, observações cotidianas tanto da ciência quanto da sabedoria popular especulavam que estados mentais diversos poderiam ter impacto em nossa saúde física e em nosso poder de reagir a diversas doenças. Muitas teorias foram desenvolvidas tentando, sem sucesso, explicar o poder da mente na manutenção ou na destruição da integridade física.

Um artigo publicado na revista ­Nature de maio começa a desvendar esse mistério. Os autores estudaram a interação do cérebro com o sistema imunológico e identificaram células no tronco cerebral que atuam como reguladores da resposta inflamatória. O artigo demonstra, pela primeira vez, que o cérebro rege o equilíbrio fino da resposta inflamatória. Essa descoberta deve dar novos rumos às pesquisas para tratamento de doenças inflamatórias e autoimunes.

Embora inédita, essa descoberta era há muito tempo presumida pelos cientistas. Sabemos que no tronco cerebral residem as áreas de controle da pressão arterial, da respiração e do ciclo de sono e vigília. Agora sabemos que lá reside também uma área importante do controle de nossa imunidade.

Para investigar como o cérebro controla a resposta imune, os autores monitoraram a atividade dos neurônios após injetar toxinas de bactérias no abdome de camundongos, desencadeando inflamação. Os pesquisadores identificaram células (neurônios) no tronco cerebral que eram ativadas em resposta à inflamação.

Quando estimulados com uma droga específica, esses neurônios se mostram capazes de reduzir a resposta inflamatória no sangue dos camundongos. De forma reversa, se o funcionamento desses neurônios é inibido, a resposta inflamatória torna-se desgovernada, ­aumentando cerca de 300% em relação ao animal com controle neural funcionante. O resultado comprova que o ­cérebro é capaz de modular fortemente o curso da resposta imune.

O estudo confirma que o nosso cérebro está em constante alerta a invasores externos. No entanto, essa reposta tem de ser finamente modulada: se for muito leve, pode permitir a vitória do invasor e, se for intensa demais, pode levar à destruição do órgão acometido. O estudo mostrou que essa resposta ocorre por meio da ativação de grupos de neurônios do nervo vago.

Trabalhos anteriores já haviam mostrado que o nervo vago, que liga vários órgãos do corpo ao cérebro, influencia as respostas imunológicas. Não se sabia detalhadamente, no entanto, que neurônios específicos seriam os responsáveis por sua ativação.

As fibras do nervo vago são responsáveis pela inervação de vísceras torácicas e abdominais, incluindo traqueia, esôfago, pulmões, coração, estômago, vesícula biliar, fígado, pâncreas, intestino delgado e parte do intestino grosso. Ele tem papel no controle da pressão arterial, da frequência cardíaca e em parte dos processos de digestão.

Já as fibras aferentes do nervo vago trazem ao cérebro estímulos sensoriais originados nesses diferentes órgãos, além de informações relativas ao paladar e à sensibilidade auditiva. Tudo o que vem do meio externo e adentra o nosso organismo – sons, gostos, toques, frio, calor, vozes – é transmitido ao cérebro, em boa parte, pelo nervo vago, suscitando, de forma inconsciente, uma resposta imediata e reflexa de nosso cérebro que, agora sabemos, pode interferir em nossa imunidade.

Um autor chamado Porges estudou, em 2004, essa via de ligação do nosso cérebro com o meio externo e a chamou de “neurocepção”, que seria a capacidade do sistema nervoso de, subconscientemente, avaliar continuamente o nível de segurança ao redor para mudar seu estado fisiológico.

Seus estudos sugeriam que a estimulação do nervo vago, por meio de ferramentas como, por exemplo, a massagem, o relaxamento guiado, a respiração coordenada e o exercício, poderia ajudar na melhora de algumas doenças.

As pesquisas científicas que elucidam esses mecanismos são muito importantes, uma vez que detalham a enorme e desconhecida interação da esfera emocional e psicossocial no tratamento das doenças sistêmicas.

Como dizia Maya Angelou, poeta, escritora, atriz e ativista de direitos civis, que morreu em 2014, “você é a soma de tudo que já viu, ouviu, comeu, cheirou, disse, esqueceu – está tudo lá. Tudo influencia cada um de nós, e por isso eu tento ter certeza de que minhas experiências são positivas”. Sigamos esse conselho, e agora mais embasados pelas novas descobertas da ciência. •

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mistério desvendado’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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