Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

Missão dada, missão cumprida

Impossível não pensar que o ministro anunciou o fim da emergência de saúde pública para tentar tirar o tema da pandemia da pauta eleitoral

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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Esta coluna seria dedicada aos escândalos envolvendo aquisições de medicamento para tratamento de disfunção erétil e próteses penianas pelo Ministério da Defesa. Alegou-se que o remédio seria destinado ao tratamento de hipertensão pulmonar, uma doença rara, que acomete fundamentalmente crianças e mulheres. O volume adquirido – 35 mil comprimidos – equivale ao efetivo de mulheres das três Forças, e a dosagem não é a recomendada para tratar a doença.

Minha ideia não era sequer denunciar a aquisição dos produtos por preços superfaturados, mas, sim, abordar o tema sob outro prisma: o do direito à saúde integral de todo e qualquer cidadão. Garantir tratamento adequado a uma pessoa com doença rara e fatal, como a hipertensão pulmonar, ou a implantação de uma prótese em um homem acometido por câncer no pênis, pela retirada total da próstata ou por ter sido vítima da explosão de uma granada, é um direito previsto na Constituição Federal.

Dessa constatação parti para reflexões mais profundas. Quantos usuários do SUS poderiam se beneficiar dos recursos gastos de forma questionável neste e em outros episódios? Este lamentável caso confirma, mais uma vez, que, no Brasil, ainda não há garantia de direitos iguais para todos.

Por que os militares têm um sistema próprio de saúde, estruturado com recursos públicos? Seria suficiente alegar que se trata de razões de segurança nacional ou que parte dos custos do sistema é bancada por militares da ativa, reserva, reservistas e pensionistas? Considerando a Lei Orçamentária Anual de 2022, a assistência médica e odontológica do Ministério da Defesa tem orçamento de 3,3 bilhões de reais. Destes, 2,1 bilhões correspondem às contribuições dos 830 mil militares e servidores civis da pasta, mas cerca de 1,2 bilhão é oriundo da União.

Eu pensava também sobre quando e como teremos um Sistema Único de Saúde capaz de atender, com qualidade e dignidade, todos os brasileiros, e de garantir a saúde como um direito universal e integral, promovendo a equidade.

Foi aí que chegou o Domingo de Páscoa e eu assisti ao pronunciamento do ministro da Saúde, anunciando o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) por conta da Covid-19.

Me senti obrigado a mudar o que havia escrito. Era, afinal de contas, a primeira vez que via o fim de uma pandemia feita dessa forma, contrariando as orientações da Organização Mundial da Saúde, da Opas e do Conselho Nacional de Saúde, da comunidade científica do campo da Saúde Coletiva, da Infectologia e de outras áreas. Foi uma decisão tomada de forma isolada, sem qualquer articulação com as secretarias estaduais e municipais de Saúde.

A diminuição de casos e óbitos no Brasil é uma realidade, mas a epidemia não acabou. Na semana epidemiológica passada, tivemos mais casos que nas semanas que antecederam a explosão das ondas anteriores por Delta e Ômicron. Temos, ainda, cem mortes como média móvel de sete dias de óbitos.

A declaração desconsiderou aspectos essenciais, como a alta capacidade do Coronavírus de produzir mutações e o fato de 26% da população brasileira estar suscetível a desenvolver casos graves e óbitos por não ter tomado ou estar com doses incompletas da vacina. Não se pode ignorar que apenas 15,4% das pessoas que vivem em países de baixa renda tomaram pelo menos uma dose da vacina, gerando uma situação de insegurança sanitária em âmbito internacional. Só nas últimas 24 horas, foram registrados óbitos por Covid em 66 países, com números expressivos na Rússia, Coreia do Sul e Tailândia.

Percebi também que não há qualquer previsão de continuidade no manejo da Covid-19. Mais de 2,3 mil normas vigentes estão lastreadas na portaria ministerial que determinou a Covid como Espin. Com a decretação do fim da pandemia, o País passa a ser conduzido em um ambiente de incertezas, insegurança jurídica e caos administrativo. Como se dará a aquisição de remédios, vacinas e equipamentos, assim como a contratação de pessoal e até a telemedicina, que estavam baseadas na situação de emergência?

Ao tratar, solitariamente, de um tema dessa envergadura, o governo desrespeita o pacto interfederativo e coloca em risco a resposta sanitária local e internacional. Ao ouvir o pronunciamento, dei-me conta de que a maior “autoridade” sanitária brasileira estava a serviço de mais uma ordem inconsequente de Bolsonaro, que objetiva tão somente tentar tirar da pauta eleitoral sua fracassada resposta à pandemia.

Agora a missão está completa: erraram no começo, fizeram tudo errado durante e, é claro, erram também na saída.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Missão dada, missão cumprida”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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