Todos sabem que Deus é brasileiro, menos o Próprio. Era o fecho de um texto que Nirlando Beirão e eu escrevemos, em parceria inoxidável, em junho de 1987 na revista Senhor, no interregno entre a primeira IstoÉ, da qual saímos em 1981, e da IstoÉ Senhor, nascida sete anos após uma fusão precipitada pelo fracasso da semanal, nas mãos de empresários desastrados. Já havíamos percebido o viés embusteiro da chamada redemocratização, mas jamais imaginaríamos o Brasil de Bolsonaro, Olavo de Carvalho e militares entreguistas. Não tinham sido aqueles do golpe de 1964.
Instalada a demência como forma de governo, consuma-se com a visita do capitão aos EUA de Trump a hedionda vassalagem ao “grande irmão do Norte”, como se lia outrora nos editoriais do Estadão, a abjeta sujeição ao império de Tio Sam. O vocabulário do passado soa exíguo, porém, à frente dos fatos dos dias de hoje, mesmo aos ouvidos dos frequentadores das fantasias mais desvairadas. Nisso tudo o País ganha a condição de súcubo do poder ianque, entregue de mão beijada ao capital estrangeiro e cada vez mais insignificante diante da liquidação excogitada por Paulo Guedes, insuperável homem de vendas.
Devo dizer com absoluta sinceridade que nada me surpreende, conquanto mais me doa, embora previsível, a insensibilidade, a parvoíce, a tranquilidade dos brasileiros ao encararem o triunfo da loucura. A maioria vive no limbo, a casa-grande cuidou com notável competência, e até com a colaboração de muitos entre quantos se supõem esquerdistas, de manter de pé a senzala, onde, obviamente, faltam a consciência da cidadania e um mínimo de saber. Já houve quem provasse que sem alimento os neurônios não proliferam. Do lado oposto, o saber também é escasso, contudo há grana e bens. Refiro-me às classes A e B1, digamos assim, e a quem mais acha que vai chegar lá, aos paneleiros dos dias recentes, aos crentes da vocação predatória do comunista Lula. Marxista-leninista, para sermos mais precisos.
A respeito desta malta, Nirlando e eu já tínhamos ideias definidas e sempre válidas. Cito alguns trechos daquele texto:
- Os moradores da Manhattan paulista, zona residencial da capital de São Paulo, alimentam a indomável certeza de que Nova York, se tivesse sido erguida no meio de um planalto, seria uma cópia aceitável da metrópole de Piratininga.
- Elite, no Brasil, é nome de gafieira. Nossa elite se comporta permanentemente como se estivesse numa.
- Depois de algumas doses de uísque, tomado como aperitivo, damas e cavalheiros dotados de certezas definitivas a respeito do seu refinamento gastronômico sentam-se às mesas mais duvidosas, achando que estão em Lyon.
- Yes, nós temos bananas, mas preconceito racial nem pensar. A gente segrega mesmo é a miséria, sem ligar para raça ou credo.
- Os corruptos não são condenados, nem processados, sequer precisam se demitir do ministério. Aqueles que denunciam a corrupção respondem a processo por calúnia, injúria e difamação.
- Os jornalistas brasileiros respeitam muito os seus leitores. Mais que estes, só respeitam o dono do jornal e os donos do poder.
- O jornalismo pátrio já alcançou o século XVI: tem diretores de redação por direito divino.
Sempre os mesmos, quando motorizados entendem que as ruas são de sua propriedade. Na hora do Mundial de Futebol hasteiam a bandeira verde-amarela nos seus carros e nos tempos da ditadura civil-militar intimavam à emigração imediata quem não “amasse” o Brasil. Do destino da pátria, no entanto, pouco ou nada se importam, tão somente do futuro da sua fortuna individual.
Pergunto aos meus desesperançados botões se seriam eles capazes de perceber que os EUA são ainda uma grande potência (mas não mais aquela), onde vigora a democracia. De sorte que Donald Trump, a quem o capitão se oferece como lacaio, ou Uncle Tom, está na liça para ganhar ou perder as próximas eleições. Um eventual governo democrático, creio eu, não lhe repetiria as besteiras e bizarrices, embora sem deixar de cultivar a Doutrina Monroe, com exclusão do Canadá. E quando o capitão se apresenta como um baluarte contra o comunismo, o próprio descabelado presidente estadunidense sabe que basta formular ideias para exprimir uma ideologia e que, de todo modo, o comunismo está morto e enterrado. Donde o capitão, se não for hipócrita mentiroso, é burro. Como quem acha que o sistema heliocêntrico não está provado, a despeito de Copérnico e Galileu.
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