Opinião

Minha fé mais profunda é que podemos mudar o mundo

No momento em que vivemos a ausência quase total de participação política, vemos ressurgir na sociedade brasileira a participação civil

Foto: Ponte Jornalismo
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Na grande maioria das vezes, o interlocutor é mais importante do que a interlocução. Ao dizer a verdade, na semana passada, a deputada federal Carla Zambelli nada desvelou, mas dizer foi importante. A congressista afirmou que o juiz Moro, nas sentenças, privilegiava o PSDB e perseguia o PT, o que até o Papa percebera e denunciara, da Cátedra de Pedro.

Entretanto, essa verdade, por mais evidente, tem valor, por desnudar a ruptura entre o bolsonarismo e o PSDB. O capítulo mais saliente do divórcio fora a saída de Sergio Moro do desgoverno. Dessa forma, deixou a descoberto os tucanos. Não é pouco, em se tratando de Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmim, José Serra, Aecio Neves e Aloysio Nunes (além de Paulo Preto, entre outros).

Não por acaso a reação, no Supremo Tribunal Federal, vem justamente dos ministros outrora indicados por aquele partido. Qual o reflexo da rinha intestina para a luta antifascista? Dependerá de como a oposição conseguir analisar o racha e se posicionar, taticamente. A frente ampla pode tornar-se mais possível. O mesmo movimento cismático verifica-se no outro tripé do golpe: os meios de informação de massa. As empresas jornalísticas mais próximas do tucanato, como a Folha de S.Paulo, rompem com a extrema-direita, que lhes ameaça a sobrevivência.

Nesse sentido, a dramática situação brasileira comporta a contradição da ambiguidade. Tomemos a reflexão de Hannah Arendt, em “Liberdade Para Ser Livre” (Editora Bazar do Tempo): “Falando em termos genéricos, nenhuma revolução é sequer possível onde a autoridade do corpo político está intacta, o que, sob condições modernas, significa uma sociedade na qual se pode confiar que as Forças Armadas obedecem às autoridades civis. Revoluções não são respostas necessárias, mas possíveis, à desagregação de um regime; não a causa, mas a consequência da derrocada da autoridade política”.

Vale lembrar que, no caso brasileiro, a autoridade política é ilegítima, resultante de um golpe de estado, oriundo de lawfare. Sempre brilhante, Hannah Arendt complementa: “Se os homens das revoluções Americana e Francesa tinham alguma coisa em comum antes dos eventos que viriam determinar suas vidas, moldar suas convicções e finalmente os distinguir, era um desejo ardente de participar nos assuntos políticos…John Adams estava inteiramente certo quando afirmou que ‘a revolução foi efetuada antes que a guerra começasse”. A participação, portanto, foi o motor daquelas transformações políticas.

Nestes dias em que assistimos protestos de massa nos Estados Unidos pela morte covarde de um cidadão negro por forças policiais daquele estado, racista como o estado brasileiro, a falência da participação não poderia ser mais evidente. Por outro lado, a força daquela sociedade civil, que fizera uma revolução, tampouco deixa de ser visível.

Interessante a complementação de Hannah Arendt, citando novamente John Adams: “…os habitantes das colônias estavam ‘dispostos pela lei em corporações ou corpos políticos’ com o ‘direito de se reunir (…) nas sedes de seus próprios municípios, para lá deliberar sobre assuntos públicos’, pois foi de fato ‘nessas assembleias municipais ou distritais que os sentimentos do povo foram formados em primeiro lugar”. No momento em que vivemos a ausência quase total de participação política, por estarmos sob regime protofascista, vemos ressurgir na sociedade brasileira a participação e a organização da sociedade civil, voltada, em primeiro lugar, à luta antifascista.

A multiplicação das manifestações antifascistas nas principais capitais têm sido um alento e a união de forças e culturas poderá levar a mudanças políticas. No Brasil, nada pode ser mais cultural do que o futebol. Exatamente nesse campo, vemos surgir a maior organização popular antifascista, sendo imensamente simbólica a união de corintianos e palmeirenses em São Paulo, liderando a luta democrática, em meio ao genocídio em que estamos.

De fato, em “Dias e Noites de Amor e de Guerra” do uruguaio Eduardo Galeano (Editora L&PM) somos chamados a não esquecer, sob pena de perecer: “O primeiro morto na tortura desencadeou, no Brasil, em 1964, um escândalo nacional. O morto número dez na tortura quase nem apareceu nos diários. O número cinquenta foi normal. A máquina ensina a aceitar o horror como se aceita o frio no inverno.” Sobre a verdade, a revolução e o amor, Galeano cita um camponês cubano que conhecera: “Don Cecílio achava que a revolução não era ruim. – A gente vivia muito isolada, como em pé de guerra – explicou-me. – Agora, as culturas se intercambiam.” Que, nas Américas – e não apenas – o antifascismo e o antirracismo o ouçam, Don Cecílio.

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