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Opinião

Milton Rondó: Precisaremos de muitas experiências vividas para vencer a extrema-direita

A ausência de experiência gera uma falsa noção de conhecimentos, diz o autor

Donald Trump e Jair Bolsonaro durante jantar em Mar-a-Lago. Foto: JIM WATSON / AFP
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“Nunca chegarás à unidade, se não te tornares uno”.
Carl Gustav Jung.

Em “Psicologia da Religião Ocidental e Oriental”, edição primorosa da Vozes, curada por ninguém menos que Leonardo Boff – entre outros doutores, o Carl Gustav Jung, precursor da psicologia analítica, brinda-nos com aquela e outras reflexões de igual importância para o nosso desenvolvimento humano.

Embora o livro tenha sido publicado originalmente em 1939, às vésperas do holocausto humano causado pelo fascismo na Europa, as reflexões para o Brasil atual, também assolado pelo fascismo, são atualíssimas, podendo ser igualmente verificáveis em outros países em que a extrema-direita assaltou o poder, como os Estados Unidos da América, do qual somos atualmente caudatários.

Com efeito, surpreende a pertinência política, hodierna, desta reflexão no referido tomo: “Estamos diante do perigo de que a realidade seja substituída, em nossos dias, pelas palavras. Isto nos leva àquela terrível ausência dos instintos no homem de hoje, principalmente no homem urbano. Falta-nos o contato com a natureza em seu estado puro, a natureza viva e palpitante. Só sabemos o que é um coelho ou uma vaca pelas revistas ilustradas, pelas enciclopédias, ou através da televisão, e depois pensamos que os conhecemos realmente; mais tarde, porém, ficamos espantados ao verificar que os estábulos ‘fedem’ porque isso não estava nas enciclopédias”.

De fato, a ausência de experiências de vida real por parte das classes abastadas, inclusive a classe média, faz com que o sentido das palavras seja hipertrofiado, induzindo à crença nas fake news.

A ausência de experiência gera uma falsa noção de conhecimentos, que passam a se amontoar como num castelo de cartas, em que a falsa fé os sustenta. Passa-se, então, a acreditar naquilo que é funcional à mentira, preferindo-a, forçosamente, à verdade.

Foi esse o mecanismo que permitiu a Hitler, Mussolini e Bolsonaro chegarem ao poder, entre outros fascistas de extrema-direita.

Orgulhamo-nos, os falantes do Português, da singularidade da palavra “saudade”, que traduz sentimento de amor por alguém ou lugar pelo qual sentimos afetuosa nostalgia.

Similarmente, outras línguas têm palavras únicas para traduzir sentimentos. A propósito, em Italiano, temos a palavra vissuto que traduz aquilo que se viveu e o conhecimento profundo que resulta dessa vivência.

Pois bem, precisaremos de muitas experiências vividas, de muitos vissutos, para vencer o fascismo, no Brasil, nos EUA, no Chile, na Hungria, na Polônia, em Israel e onde o mal refluir da cloaca da História.

Ilustrativa, nesse sentido, a citação de Rosa Luxemburgo por Fábio Régio Bento, em “Frei Betto e o Socialismo Pós-Ateísta”, sobre uma social-democracia que Rosa, corretamente, propugnava ser revolucionária: “…a social-democracia não está ligada à organização da classe operária, ela é o próprio movimento da classe operária…os erros cometidos por um movimento operário verdadeiramente revolucionário são, do ponto de vista histórico, infinitamente mais fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor ‘comitê central”.

Por essa razão, na fecunda reflexão sobre a obra política de Lenin, em que o feminismo democrático e libertário dela se contrapõe ao machismo autoritário, cultural, do líder russo, expressa: “…o ultracentralismo preconizado por Lenin parece-nos, em toda a sua essência, ser portador, não de um espírito positivo e criador, mas do espírito estéril do guarda-noturno. Sua preocupação consiste, sobretudo, em controlar a atividade partidária e não em fecunda-la, em restringir o movimento e não em desenvolvê-lo, em importuna-lo e não em unifica-lo”.

Como brasileiros, culturalmente autoritários, em decorrência da trágica História nacional, devemos levar essas palavras muito a sério, pois o risco de matarmos a criatividade política pelo centralismo, pela burocracia e pelo “policialismo” é enorme.

Sobre o pluralismo político e comunicacional, vale buscar as raízes da nossa cultura ocidental.

Recorda-nos Gustavo Barcellos, em “Mitologias Arquetípicas”, também editado pela Vozes: “…na mentalidade grega o bom e o belo estão juntos. Só é bom o que também for belo. Belo no sentido de trazer uma ordem, um kosmos. O que é belo é o que está ordenado, o que tem um lugar, o que é estético – estético no sentido de estar desperto, não estar “an-estético”, anestesiado. O estético é o que tem a força para nos despertar. O belo desperta. A alma se encaminha naturalmente em direção ao belo: é o que dizem os antigos filósofos neoplatônicos sobre a alma”.

Quem se lembra de Elis Regina, cantando no Festival de Jazz de Montreux, um dos mais prestigiados do mundo, vai recordar como ela conseguia – da forma mais bela possível – denunciar o genocídio, inclusive cultural, que a ditadura militar perpetrava no Brasil.

Adrede, Barcellos rememora sobre o deus grego da guerra, Ares, Marte – para os latinos: “…o mito designa a Ares/Marte uma localização específica, um lugar arquetípico no mundo. Esse lugar está fora da polis. No mito grego, ele se chama Areópago, que literalmente quer dizer “colina de Ares”. No mito romano, uma localização semelhante para o Deus é referida por Campo de Marte. É lá que ele é mantido. Ambos dizem que o lugar do deus é fora da cidade, seus impulsos e suas paixões devem ser contidos e mantidos a distancia. Ares não é um deus político. O ensinamento é que o militarismo não serve para administrar a cidade. Arquetipicamente, é o civil que deve controlar o militar, não o contrário”.

Os arquétipos são vivências coletivas e consolidadas da humanidade, nosso patrimônio cultural coletivo de vissutos; não os desprezemos, ao contrário, valorizemo-os como vivências interculturais e atemporais, memória do que deve ser evitado, caminho a ser trilhado.

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