Opinião

Milton Rondó: a política se transformou em Fla-Flu e Gre-Nal, com grande proveito para o país

Duas palavras tão próximas no léxico, “diferente” e “deferente”, fundiram-se em uma explosão de cidadania, de antirracismo, de antifascismo

Foto: Felipe Campos Melo Foto: Felipe Campos Melo
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“Só uma vida fervilhante e sem entraves chega a mil formas novas, improvisações, mantém a força criadora, corrige ela mesma seus erros”. Rosa Luxemburgo.

Até poucos dias atrás, era comum a crítica de que a política não se poderia transformar em Fla-Flu ou Gre-Nal (no caso do Rio Grande do Sul).

Pois bem, ela se transformou em Fla-Flu e Gre-Nal, com grande proveito para o país.

No último domingo, assistimos à maravilhosa cena da torcida do Palmeiras, a famosa “Mancha Verde”, ser recebida sob aplausos pela não menos gloriosa “Gaviões da Fiel”, do Corinthians, naquela que é a agora de São Paulo, o vão livre do MASP, obra da genial Lina Bo Bardi, que transformou o vazio em pleno.

Duas palavras tão próximas no léxico, “diferente” e “deferente”, fundiram-se em uma explosão de cidadania, de antirracismo, de antifascismo.

Ao mesmo tempo, a maior parada LGBTI+ do mundo passava por ali, de forma virtual, como que confirmando aquela belíssima fusão cultural, política, histórica.

De fato, vivemos sob o signo de Gabriel Garcia Marquez – o Gabo: por um lado, na crônica de uma morte anunciada, por outro, no amor nos tempos do cólera.

Com o aniversariante do dia 14 passado, o Che Guevara, lembremos que: “Amar em tempos de ódio é um ato revolucionário”.

Sempre preciso, o comandante da nossa Pátria Grande, expressão cunhada pelo libertador do Uruguai, José Artigas, que tão bem definiu a América Latina e o Caribe, conforme Darcy Ribeiro recorda, em “América Latina: a Pátria Grande”, volume editado pela editora da Universidade de Brasília.

Na introdução da obra, o grande Eric Nepomuceno, um dos maiores latino-americanistas brasileiros e tradutor exímio do Gabo, recorda as palavras de Darcy, o criador da revolucionária UNB: “Na América Latina, só temos duas saídas: ser indignados ou resignados. E avisava que não iria se resignar jamais”.

São essas vozes que vemos ecoarem. No mundo civil, com manifestações antifascistas e antirracistas, as quais pedem a cassação da chapa que fraudulentamente venceu as eleições presidenciais. No militar, com pelo menos dois exponentes, o General Santos Cruz, que, com muita razão, defende que os militares no governo sejam reformados – já são mais de três mil; e do Brigadeiro Sérgio Ferolla, que denuncia a subordinação do país aos interesses da extrema-direita dos EUA.

Como a análise do Brigadeiro, a de Darcy tão bem descreveu os mecanismos dessa dominação: “Uma vez independizadas suas sociedades, o caráter exógeno dessas classes dominantes, forjado no período colonial, e seus próprios interesses induziram-nas a continuar regendo suas nações como cônsules de outras metrópoles. Para isso instituíram uma ordenação socioeconômica e política adequada, com fundamento no latifúndio e no entreguismo, e promoveram a criatividade cultural como uma representação local de tradições culturais alheias”.

Gramsci perpassa, portanto, tanto a análise da dominação cultural quanto a libertação, sendo, para ele, a cultura o centro do móvel político.

Em análise aguçada do continente, Darcy complementa: “…a determinação de alcançar os desígnios dos colonizadores na forma de um projeto intencional alheio às aspirações da massa da população conscrita como força de trabalho. Em nenhum momento, no curso do processo de colonização, esses contingentes envolvidos na produção constituem uma comunidade que exista para si, um povo com aspirações próprias que possa realizar como requisitos elementares de sua sobrevivência e prosperidade. Constituem, de fato, um combustível humano em forma de energia muscular, destinado a ser consumido para gerar lucros”.

Conclui esse pensamento com um verdadeiro raio X de nossa endemia política: “Pouco a pouco vai surgindo uma contradição irredutível entre o projeto do colonizador e seus sucessores e os interesses da comunidade humana resultante da colonização. Ou seja: entre os propósitos e os procedimentos da classe dominante, da subordinada e da maioria da população que ativava o empreendimento, primeiro colonial, depois nacional. Para essa população, o desafio colocado ao longo dos séculos foi o de amadurecer como um povo para si, consciente de seus interesses, aspirante à coparticipação no comando de seu próprio destino…Ainda hoje esse é o desafio principal com que nos defrontamos todos nós latino-americanos”.

Na mesma semana em que descobrimos que, segundo o presidente legítimo da Bolívia, Evo Morales, a embaixada brasileira em La Paz participou ativamente, ao lado da OEA e da União Europeia, do golpe de estado naquele país, vemos o governo paraguaio exonerar comandante militar, por ter permitido a entrada de brasileiros, cidadãos de país que sequer ministro da saúde tem, por não haver médico que se preste a matar o próprio povo, como determina o desgoverno atual.

Portanto, avançamos como Pátria Grande, mesmo em meio à pandemia e às contradições ditadas pelo império declinante e seus capitães do mato locais.

Dos EUA, vem também esperança: Biden ultrapassa Trump nas intenções de voto e a bancada democrata assinala que não aceitará um acordo com o Brasil que mate e desmate, assim como os países europeus têm feito.

Concomitantemente, o chefe das forças armadas dos EUA pediu desculpas à nação, por ter participado de ato político ao lado de Trump. Evidentemente, o gesto honrado não passou despercebido nas colônias, inclusive nesta.

Em homenagem aos jovens e às jovens destemidas que mais uma vez ocuparam as ruas de praças e reafirmaram a democracia latino-americana, concluo com pensamento daquela grande mulher, filósofa-política libertária, Rosa Luxemburgo: “…é preciso que toda a massa popular participe. Senão o socialismo é decretado, outorgado por uma dúzia de intelectuais fechados num gabinete” (em “Frei Betto e o Socialismo Pós-Ateísta”, de Fábio Régio Bento).

Só resta concordar com Simone de Beauvoir que a revolução será feminista ou não será.

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