Thiago Rodrigues

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Doutor em Relações Internacionais pela PUC-SP e Sorbonne Nouvelle e professor na Universidade Federal Fluminense (UFF)

Opinião

Militares não entendem que Bolsonaro joga contra as Forças Armadas

Desde a campanha presidencial, em 2018, os vínculos de Jair Bolsonaro com os militares têm sido destacados e analisados no Brasil e no exterior. Chamou a atenção o fato de que um ex-capitão do Exército, cuja vida política como parlamentar foi de poucos logros e […]

Fonte: Marcos Corrêa/Fotos Públicas
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Desde a campanha presidencial, em 2018, os vínculos de Jair Bolsonaro com os militares têm sido destacados e analisados no Brasil e no exterior. Chamou a atenção o fato de que um ex-capitão do Exército, cuja vida política como parlamentar foi de poucos logros e de muita conexão político-ideológica com valores associados às Forças Armadas, tivesse a capacidade de mobilizar o descontentamento contra os governos do Partido dos Trabalhadores e o que eles simbolizavam.

O ex-capitão convidou um ex-general para compor sua chapa e, ao assumir o governo, começou uma depuração dos ministérios e autarquias, com o objetivo de remover servidores e prestadores de serviços que fossem coligados com partidos e/ou perspectivas de esquerda. Com isso, o governo recompôs muito dos seus quadros, usando, entre outros meios, o recurso de recorrer a militares da ativa e da reserva. Concluídos dois anos de governo, a esfera federal abriga hoje aproximadamente seis mil militares. Alguns deles ocupam posições-chave no Estado, como a titularidade nos Ministérios da Saúde, da Defesa, da Ciência e Tecnologia, da Infraestrutura, das Minas e Energia, além funções com status de ministro na Casa Civil, na Segurança Institucional, na Secretaria de Governo e na Controladoria Geral da União.

Especificamente no Ministério da Saúde – que está no olho do furacão da crise da COVID-19 – o ministro é um general da ativa e o diretor da ANVISA (responsável, por exemplo, pela liberação das vacinas) é um almirante da reserva. Além deles, outros 25 ocupam posições importantes na estrutura do Ministério. A justificativa de Bolsonaro para recorrer aos militares passa por um argumento com dois elementos: o primeiro é o da suposta excelência técnica de oficiais militares na execução de tarefas específicas, o segundo é a também suposta independência dos militares com relação às lutas político-partidárias e ideológicas, o que conferiria objetividade e pragmatismo na gestão da coisa pública.

A crença na objetividade e imparcialidade política dos militares vem, pelo menos, desde o golpe republicano, em 1889, inspirado por ideais positivistas e pelo projeto do alto oficialato, principalmente do Exército, de assumir a função de poder moderador que antes cabia ao imperador. Pesquisas de opinião nos últimos anos continuam registrando um alto grau de confiança e apoio populares nas Forças Armadas, revelando a confiança de que elas são conduzidas por lisura, ordem e propósitos voltados ao bem-comum. Uma avaliação de tal modo positiva significa que as Forças Armadas no Brasil – diferentemente do que acontece em outros países da nossa região – continuam bem-quistas.

No momento, o que se vê, todavia, são os militares na berlinda, sendo foco de críticas e de ridicularização por conta da indecisão, omissão e contradições na condução do combate à pandemia de COVID-19, que já cobrou 265.000 mortos no Brasil. A imagem de eficiência e determinação atribuída tradicionalmente aos militares está arranhada.

A cientista política Polina Beliakova ensina que no campo das relações civil-militares, um dos meios pelos quais pode-se dar o crescimento da presença de militares em funções de governo é a “delegação por deferência”. Isso acontece quando o governante civil convida militares para assumir funções que são tipicamente ocupadas por expertise civil por acreditar numa especial vantagem técnica dos militares para lidar com um problema. Isso tem acontecido no governo Bolsonaro em geral e no caso da Saúde, em particular.

A delegação por deferência, no entanto, vem acompanhada, segundo Beliakova, pela delegação de “altos riscos reputacionais”, ou seja, as funções assumidas pelos militares costumam ser delicadas, em momentos que são geralmente de crise e, com isso, as chances de fracasso são grandes. Em uma situação assim, o sucesso faria dos militares heróis, e o insucesso os transformaria em bodes expiatórios. O governante, por sua vez, transfere os riscos de fracasso para os militares e, em caso de êxito, colhe os louros por ter sido ele quem indicou os militares para lidar com a crise em questão.

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Carolina Antunes/PR

A situação atual do ministro Gen Pazuello exemplifica esse risco à reputação, tanto dele quanto do Exército e das Forças Armadas em geral. Enquanto o país bate todos os recordes mundiais em número de infectados e de mortos por COVID-19, Pazuello acumula acusações de negligência (como no caso da crise do oxigênio em Manaus), de incompetência (como no envio das vacinas do Amazonas para o Amapá) e de subserviência (quando é desautorizado publicamente pelo presidente). O desgaste de Pazuello e das Forças Armadas é tragicômico. No lado cômico, as Forças Armadas, o Exército e o ministro tornaram-se memes associados a latas de leite condensado e a pintura de calçadas. No lado trágico, está a incapacidade de oferecer soluções concretas para conter a perda maciça de vidas, fato que ameaça colocar ministro e demais militares no banco dos réus (no Brasil e, talvez, em Haia).

A situação em que o presidente colocou o Gen Pazuello e demais militares no Ministério da Saúde é praticamente impossível: por interferência direta de Bolsonaro, o Ministério atrasa a compra de vacinas, fracassa na elaboração de planos de vacinação, confronta-se com governos estaduais e municipais e é induzido ao erro. É princípio elementar da gestão pública que todo ministro seja o especialista no tema de sua pasta e que, a partir dessa expertise, ofereça ao presidente opções e cursos de ação.

O que acontece no Brasil é o inverso. O presidente não é versado em saúde pública, epidemiologia ou imunoterapia, mas recomenda remédios e opina sobre práticas de prevenção todos os dias. Com base nessas crenças dá ordens ao Gen Pazuello e espera obediência total. Pazuello sabe o que aconteceu com Mandetta. Por sua vez, o ministro – especialista em logística – não tem, também, qualquer formação na área de saúde.

Resultado: Pazuello está na fogueira e, com ele, as Forças Armadas. Bolsonaro, conscientemente ou não, promove uma delegação baseada em “deferência”, ou seja, com admissão de admiração, mas termina por colocar ministro e, com ele, toda a corporação numa situação de alto risco reputacional.

A pandemia não vem arrefecendo no Brasil. Pelo contrário, novas variantes do vírus já se espalharam pelo país provocando nova onda de superlotação de leitos hospitalares, o que provoca o colapso do sistema de saúde. O Brasil passa a ser visto como uma “ameaça global” – como afirmou editorial do The Washington Post – por tornar-se um celeiro para mutações do vírus e pelo descontrole do ritmo de infecção. Com isso, o mundo hoje se divide entre os países que aceitam cidadãos brasileiros apenas em casos excepcionais e emergenciais, e a grande maioria que não recebe brasileiros de modo algum. O prejuízo para a imagem internacional do Brasil é enorme, mas também os custos impostos aos negócios e à vida pessoal de milhares de brasileiros.

O presidente não assume a responsabilidade sobre a situação trágica da pandemia. Com a movimentação de governadores e prefeitos no sentido de enfrentar a COVID-19, o peso da inoperância e do fracasso recaem sobre o Gen Pazuello e sua equipe. O preço da “deferência” presidencial é o desgaste dos militares que foram colocados numa posição sem possibilidade de ser bem-sucedida. A aparente devoção de Bolsonaro aos militares não passa de ouro de tolo. Quem perde são o país, os brasileiros e os militares.


Texto citado: Beliakova, Polina: “Erosion of Civilian Control in Democracies: a Comprehensive Framework for Comparative Analysis”, Comparative Political Studies, First View (2021), p. 4.

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