Maria Rita Kehl

Opinião

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Milagre

Em um concerto inclusivo no Sesc Belenzinho, notas silenciosas ecoam no corpo, na alma e na plateia inteira. Há muitas formas de apreciar música boa

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Milagre
Associação de Surdos e Surdas de Presidente Prudente e Região | Foto: Estevão Salomão
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O título desta coluna remete a uma inesquecível canção de Dorival Caymmi, a descrever a dádiva alcançada por pescadores em uma Quarta-Feira Santa: Era só jogar a rede e puxar a rede/ Era só jogar a rede e puxar. A melodia e a batida dessa cantiga são tão contagiantes que a palavra “milagre” sempre me vem à mente diante de boa música, seja qual for o tema dela.

Nos anos 1970, o mineiro Milton Nascimento, de uma geração posterior à de Caymmi, também gravou uma canção com essa temática, Milagre dos Peixes, signo de fecundidade, prosperidade e renovação da vida, em meio à morte e à destruição provocadas pela ditadura: Eu vejo estes peixes e vou de coração/ Eu vejo estas matas e vou de coração à natureza.

Não pretendo me alongar, neste texto, sobre a música brasileira, à qual já prestei tributo na coluna Meu Brasil Brasileiro, publicada na edição 1353 de ­CartaCapital, em março deste ano. O significante “milagre” se impôs a mim enquanto assistia a um show de Guinga e Lívia Nestrovski no Sesc Belenzinho, em São Paulo. A apresentação foi maravilhosa, e minha cadeira estava bem próxima do palco, um grande privilégio. Além disso, o espetáculo daquela noite contou com algo que me pareceu inusitado: a presença de duas jovens que traduziam o repertório, inclusive as execuções de músicas instrumentais, para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Fiquei hipnotizada com o empenho e a desenvoltura daquelas moças ao transmitir o concerto a quem não podia escutá-lo, valendo-se de gestos de grande destreza. O trabalho delas me deixou intrigada: se as músicas não tinham letras, sendo exclusivamente instrumentais, qual era exatamente a mensagem que elas passavam à comunidade surda? Aliás, antes disso, o que teria ­atraído espectadores com ­deficiência auditiva a um show de música?

Imagino que os espetáculos propiciem experiências multissensoriais, envolvendo tato, visão e olfato, não apenas a audição. Uma pessoa surda pode sentir a vibração da música, encantar-se com as luzes do palco, experimentar a emoção do evento e dançar na plateia, por exemplo. Ainda assim, permaneci curiosa a respeito do que as profissionais de Libras estavam comunicando ao público. Seriam elas capazes de traduzir acordes, ritmos, altos e baixos, e a carga emocional das canções? De todo modo, fiquei encantada com a disposição daquelas jovens em buscar a inclusão de todas as pessoas da plateia, independentemente de quantos espectadores naquela sala tinham ou não deficiência auditiva, ou de quantos compreendiam Libras.

Agora me dei conta de que, talvez, este seja o “milagre” que atravessou todo o show: a música, de excelente qualidade, foi transmitida a uma parte da plateia por meio de uma linguagem silenciosa. Aliás, como é importante o silêncio para quem gosta de música. Vem daí meu desconforto quando me encontro em uma festa em que se coloca “música de fundo”.

Penso – ou melhor, sinto – que a música só faz sentido em duas situações: para ser dançada ou para ser apreciada com a devida atenção. A “música de fundo” é um ultraje à arte. Durante uma festa, ninguém parece dar atenção ao que está sendo executado por um artista ou reproduzido por um aparelho, a não ser quando pretende dançar. O mais comum, no entanto, é que o anfitrião coloque algo para tocar o tempo todo, talvez na intenção de tornar o ambiente mais animado. Na prática, isso apenas obriga os convidados a falar mais alto, às vezes até a gritar para se fazer ouvir. No fim, ninguém escuta mais nada. É um crime de “lesa-canção”.

Na contramão dessa tendência de “animar a festa” com a infeliz ideia da música de fundo, o show de Guinga e Lívia­ Nestrovski, acompanhado da transmissão inclusiva em Libras, pareceu-me estar à altura da palavra “milagre”, que me ocorreu quando estava na plateia e que agora repito em homenagem aos artistas e demais profissionais envolvidos no evento, em especial às duas bravas intérpretes que transformaram o espetáculo em um acontecimento marcante para todos os participantes. •

Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Milagre’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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