Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Michelle Obama e a negação do direito de errar

A exigência da perfeição é mais um traço do racismo, que nos fere profundamente e nos desumaniza

Foto: Tim Pierce
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Como diria o professor Muniz Sodré, ando bastante assoberbada. Estou às voltas com o lançamento do meu novo livro, Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil. Além da ansiedade de colocar mais um “filho” no mundo, ainda tenho uma tese para escrever e questões da vida adulta para lidar. Ufa!

No início da semana, me dei ao luxo de desligar o celular, deitar no sofá e procurar uma coisa despretensiosa na televisão. Abri a Netflix e dei de cara com Nossa luz interior, título do livro e da entrevista concedida por Michelle Obama à apresentadora Oprah Winfrey. Era o que eu queria e precisava. mas antes de falar das histórias contadas pela ex-primeira-dama dos Estados Unidos, preciso dizer que sempre me pergunto, quando vejo Oprah: sendo o Brasil o país com maior população negra fora da África, como ainda não temos uma popstar como Oprah Winfrey entrando em nossas casas diariamente? A resposta é fácil. O racismo presente na TV brasileira explica. 

Voltando a Michelle Obama, confesso que fiquei surpresa. Vi uma mulher engraçada, divertida, que ri de si mesma, o que ela atribui à maturidade: “Nunca me senti tão dona da minha própria vida”. Guardei para mim. Às vésperas de completar 40 anos, é exatamente assim que me sinto: mais forte, mais segura, mais feliz, mais bonita e também mais malcriada.

Ao falar da pandemia da Covid-19, período de gestação do seu livro recém-lançado – em que se viu deprimida e com a sensação de que “sua luz estava se apagando” – Michelle destacou como ser casada com Barack Obama colaborou para que atravessasse, da melhor forma possível, aquele momento difícil ao lado da família: “Ajudou muito o fato de morarmos com um ex-presidente. Não um presidente qualquer, mas alguém que lê e acredita na ciência”. 

Como não poderia deixar de ser, senti inveja. Lembrei imediatamente do que vivemos e sentimos na pele ao longo dos dois anos de pandemia. Pensei nas consequências de termos tido um presidente que não respeitava os cientistas e incentivava a aglomeração das pessoas. Lembrei que esse mesmo presidente, diante da morte e da destruição de milhares de famílias, sem qualquer traço de compaixão e humanidade, disse: “E daí?!” Não sou coveiro.” E ainda houve mais: enquanto os hospitais estavam lotados de pacientes intubados, vendo a morte de perto, o senhor que ocupou a presidência entre 2019 e 2022 teve a coragem de imitar uma pessoa com falta de ar. Jamais me esquecerei do tempo em que a mentira, o descaso, o desprezo pela vida humana viraram política de Estado neste país

Ao recordar dos oito anos que passou na Casa Branca, Michelle Obama trouxe questões que atravessam a vida da maioria de nós, negras: a violência racista e a invisibilidade. Reconhecida como uma das mulheres mais poderosas do mundo, a escritora ressaltou que, quando se é negra, “a expectativa sobre você é muito baixa”. Ela afirmou que sempre encontraremos pessoas que nos “destratam, menosprezam e julgam”. E destacou: “Achavam que eu não servia para ser a primeira-dama dos Estados Unidos”.

Durante a entrevista, a mãe de Malia e Natasha apontou para algo que tem custado muito à população negra: não podemos, não temos o direito de errar. Para nós, qualquer erro, por menor que ele seja, pode ser fatal, principalmente quando alcançamos espaços de poder, decisão e prestigio

Michelle Obama declarou: “Tenho estado vigilante, cautelosa e profundamente ciente de que Barack, eu e nossas filhas estávamos sob os olhos da nação, e que os negros, em uma casa historicamente branca, não podem cometer erros”. Essa fala me fez lembrar do cantor Wilson Simonal, ícone da música brasileira, que ao ser acusado sem provas de colaborar com a ditadura, foi execrado, teve sua carreira destruída, sem qualquer chance de defesa. A exigência da perfeição é mais um traço do racismo, que nos fere profundamente e nos desumaniza

À semelhança do que escreveu a escritora afro-americana bell hooks, Michelle Obama sugeriu que, enquanto pessoas negras, devemos cultivar amor por nós mesmas, já que o mundo nos nega isso o tempo todo. A autora de “Nossa luz interior” sentenciou: “Temos que praticar ser gentis conosco e nos cumprimentar com alegria, alimentando nossa própria luz e dando conta dos nossos próprios medos”. 

Recomendo fortemente a entrevista: para quem está cansado, para quem está em busca de distração, para quem sabe o valor da “nossa luz interior”. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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