Opinião

Meus cavaleiros inexistentes

Italo Calvino, um dos meus heróis, bebeu na fonte de Cervantes e é uma grande influência para quem se aventurar em páginas não escritas

Meus cavaleiros inexistentes
Meus cavaleiros inexistentes
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Dom Quixote talvez seja a principal influência literária para todos os escritores latino-americanos, e Italo Calvino, um de meus escritores favoritos, certamente bebeu nesta fonte.
Meu primeiro contato com Dom Quixote foi através de uma versão traduzida e adaptada por Orígenes Lessa, publicado pela Editora Abril, voltada para jovens. Depois, na faculdade, li pela primeira vez a versão completa de Quixote, nos dois volumes publicados pela Editora Itatiaia.
Como não se armar com essas obras na vida literária? Todos os espanhóis que conheço sabem de cor o início do livro: “Num lugar da Mancha, cujo nome não quero me lembrar…”
Em 1605, Cervantes já dominava a arte de narrar, estabelecendo desde o início uma ambiguidade fundamental à literatura: nada de definições precisas, nada de realidade, uma liberdade ficcional absoluta.
Muitos séculos depois, Calvino cria seu Cavaleiro Inexistente, numa clara referência ao herói quixotesco. Em sua trama, um cavaleiro que não existe, um jovem que quer ser um grande cavaleiro e uma irmã Teodora que não é nenhuma santa questionam o que realmente é “ser alguém na vida”.
Na trama de O Cavaleiro Inexistente, narrado por uma mulher – a irmã Teodora, que depois revela ser Bradamante, uma guerreira e tanto –, o jovem Rambaldo se apaixona pela guerreira que se apaixona pelo Cavaleiro Inexistente. Enquanto Bradamante se encanta com um homem que não existe, Rambaldo inveja a fama do Cavaleiro Inexistente, enquanto este deseja a vida do jovem.
Todos desejam ser o que não são ou conquistar o que não possuem. Bebendo nas páginas de Cervantes, Calvino também sabe como deixar vago o tempo em que a história se passa: “Ainda era confuso o estado das coisas no mundo, no tempo remoto em que esta história se passa”.
O Cavaleiro Inexistente fascina tanto o leitor jovem quanto o experiente. Na Europa, é um livro lido por jovens, a partir dos 13 anos. Para uns, revela-se uma trama de amor em tempos de cavalaria, para outros o fascínio será com a narrativa fabulosa de Calvino, que com beleza e leveza, questiona os valores escolhidos pelos homens e mulheres: o que seria realmente importante nesta vida? Acumular glórias? Manter o brilho da armadura? Amar? Escrever?
Num belo elogio à ficção, a personagem Bradamante diz: “O que eu não sei, trato de imaginar (…) a arte de escrever histórias consiste em saber retirar do nada que se compreendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada”.
Italo Calvino é sem dúvida um dos meus heróis favoritos. Nascido em Cuba, de pais italianos, e morreu em Siena, em 1985. Sem dúvida, uma grande influência para quem pretende se aventurar um dia por páginas ainda não escritas.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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