

Opinião
Meio e fim
A violência não é só um instrumento de que se serve o bolsonarismo, ela é também seu objetivo


O bolsonarismo não é um movimento político qualquer, mas um que se elegeu e governou com uma retórica e uma simbologia da violência. Não à toa, durante a campanha Jair Bolsonaro usava como gesto de identificação de seu projeto político a mão que emula um revólver. Não casualmente, bradou que iria metralhar a “petralhada”, utilizando um tripé de filmagem como simulacro de uma metralhadora. Que tipo de político se elege usando armas como emblema? Que tipo de proposta política usa, ainda que no “sentido figurado”, a execução de adversários políticos como retórica para inflamar seus seguidores?
Aliás, Bolsonaro se queixou da jornalista que lhe perguntou sobre essa famigerada frase. Segundo ele, a repórter seria incapaz, por deficiência de formação, de entender o “sentido figurado” daquilo que disse o então candidato. Cumpre questionar: será que os bolsonaristas mais ardentes, como o policial penal federal Jorge Guaranho, também não podem confundir o “sentido figurado” com o sentido real? Ou serão eles mais bem formados que a repórter? Quem usa frases desse teor deveria ser mais precavido, presidente.
Contudo, não se trata só de retórica e de simbologia (que têm efeitos práticos sobre o comportamento dos seguidores), mas de medidas governamentais efetivas para estimular a violência: liberou-geral de armas e munições, desmonte dos órgãos e das políticas de fiscalização que inibem o crime e as violências por ele perpetradas, incentivo aberto da autoridade governamental à brutalidade policial, alardeada como meritória.
Por tais medidas e por tal retórica é impossível dissociar três episódios recentes de violência daquilo que promovem o governo Bolsonaro ou o presidente diretamente. E, nesses três episódios, o chefe de governo procurou culpar as vítimas pelo seu trágico destino, atenuando a responsabilidade dos criminosos.
Genivaldo de Jesus Santos foi assassinado por policiais rodoviários federais numa câmara de gás improvisada no bagageiro de uma viatura. Essa mesma corporação – “nossa Polícia Rodoviária Federal”, como costuma dizer Bolsonaro – tem sido estimulada a participar de operações de assalto estranhas à sua missão, cooptada pelo bolsonarismo para integrar sua guarda pretoriana, inclusive levando militantes na garupa de veículo oficial em motociatas presidenciais. Ademais, o incentivo governamental generalizado à brutalidade policial tem efeitos sobre o comportamento de integrantes das corporações, dentre as quais está a PRF. Ao abordar o episódio, Bolsonaro chamou Genivaldo, a vítima, de marginal, minimizando seu assassinato cruel pelos policiais mediante a invocação de outro episódio recente, em que PRFs foram mortos por um bandido. Câmara de gás como legítima defesa?
TRATA-SE DE UM MOVIMENTO TANATOCRÁTICO. HÁ UM TOTAL DESPREZO PELA VIDA
A morte e o vilipêndio dos corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia não ocorreu por acaso. Decorreu diretamente do desmonte da estrutura estatal de proteção ambiental e das áreas indígenas, que estimula a ação de grupos criminosos nessas regiões: grileiros, madeireiros, garimpeiros, pecuaristas, pescadores. Bolsonaro novamente culpou os vitimados, apontando-os como aventureiros irresponsáveis num lugar perigoso. Vale notar que grupos criminosos que atuam no Vale do Javari, onde se deu o crime, e noutras regiões da Amazônia, foram defendidos abertamente pelo atual governo. O próprio Bolsonaro condenou a queima de equipamentos utilizados para a prática de ilegalidades na floresta (expediente previsto em lei), sinalizando assim a aprovação presidencial de seu uso naqueles lugares e, portanto, autorizando a incursão dos criminosos nessas áreas. Não bastasse, houve manifestações diretas e presenciais de solidariedade de integrantes do governo a grupos criminosos, como as feitas pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que se reuniu com madeireiros ilegais para defender seus interesses.
O assassinato de Marcelo Arruda em sua festa de aniversário, diante de familiares e amigos, não foge a tal regra. A retórica da violência, a preconização do uso de armas para fins políticos (defesa da “liberdade”) e o tratamento da oposição de esquerda como um “mal” a ser combatido estimulam esse tipo de ação. Se na luta do bem contra o mal os “esquerdistas” são o mal, devem ser extirpados. Se o inimigo é hoje (como era na ditadura tão apreciada por Bolsonaro) um inimigo interno (essa mesma esquerda) deve ser combatido por meio de uma guerra e, portanto, com armas.
Jorge Guaranho nada mais fez do que seguir a orientação do “mito”, açulado por ele em seu ódio a petistas. E o presidente ainda defendeu a ação do assassino, alegando que apenas matou seu inimigo político porque teria sido por ele agredido. Depois, Bolsonaro ainda intentou instrumentalizar gente da família da vítima mais simpáticos a suas ideias políticas para tentar inverter em seu benefício a narrativa do crime.
Bolsonaro manifesta seu desdém pela vida humana nas mais diversas situações. Em chacinas promovidas por policiais (inclusive, agora, com o concurso da PRF), elogia a matança e desfaz dos mortos. Dessa forma, dá à execução sumária de suspeitos (ou de quem estiver no caminho) a chancela de uma política de governo. Durante a pandemia da Covid-19 se tornaram célebres as declarações ultrajantes dadas por ele acerca dos mortos (“e daí”, “não sou coveiro”, “todo mundo morre um dia”). Não foi diferente sua postura diante de desastres naturais, como as inundações que vitimaram centenas de moradores na Bahia e em Minas Gerais no início de 2022, enquanto o presidente despreocupadamente se divertia à beira-mar.
Se tal desprezo se dá em relação à vida de cidadãos comuns, o que não dizer de adversários – isto é, de inimigos – políticos? Nuns casos, o presidente não se importa, noutros, o presidente estimula.
A violência não é só um instrumento de que se serve o bolsonarismo, ela é também seu objetivo. Mais do que isso, a violência, ritualizada e prática, define o que o bolsonarismo é: um movimento tanatocrático. •
*Cientista político e professor da FGV-SP.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Meio e fim”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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