Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

‘Medo do comunismo’ mostra que agenda reacionária de 2018 será explorada em 2022

Esta coluna tende a recomendar que isso não seja subestimado, como foi há três anos. Vejam onde fomos parar

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Para quem achava que o “fantasma do comunismo” era algo residual no imaginário coletivo do eleitorado brasileiro ou uma espécie de sentimento social e político superdimensionado por supostas atipias das eleições de 2018, eis que surge o instituto Datafolha e mostra que quase metade (44%) da população brasileira acredita que o Brasil corre o risco de se tornar um país comunista após as eleições de 2022.

Não se trata de um dado de simples análise e passível de uma conclusão única, visto que podemos especular sobre muitas lacunas e arestas hermenêuticas que devem pairar sobre o conceito de comunismo nas fantasias desses milhões de brasileiros. Usando uma expressão cara a Umberto Eco, creio que nos cabe tentar examinar quais seriam as propriedades semânticas que compõem os significados e entendimentos sobre a ideia de comunismo no imaginário dessa parcela da população brasileira.

Não creio, definitivamente, que seja algo minimamente coerente com a formulação original da filosofia marxiana, ou seja, a utopia comunista ou o último estágio do fim da história de Karl Marx em que a divisão de classes e a divisão social do trabalho ficariam para trás entre os escombros da fome e da miséria produzidas pelo capitalismo e o Estado socialista, subproduto da revolução proletária. Tampouco creio que seja, exatamente, o temor de uma versão brasileira da experiência histórica de regimes comunistas que converteram a propriedade privada em amplos domínios de controle da burocracia estatal.

Não que não existam mentalidades estúpidas, principalmente advindas da nossas “elites” econômicas, que equivalem, de maneira cínica e conveniente, modelos de democracias sociais a regimes comunistas. Eles existem e talvez até venham ganhando adeptos no estratos economicamente inferiores, mas se trata tão e somente da velha defesa do Estado máximo para os de sempre no topo e mínimo para os também de sempre, na base. Paulo Guedes está aí dando provas e mais provas desde que assumiu o ministério da economia.

Eu creio que o temor de uma ameaça comunista nesse caso não se dá no plano das relações materiais, mas das relações simbólicas.

O medo de um risco comunista me parece muito mais alinhado às propriedades semânticas que definem uma ideia de comunismo como um veículo político poderoso para a subversão dos valores e costumes tradicionais. A degradação dos valores morais. Trata-se de uma manifestação do espírito conservador brasileiro e, ao seu lado, do próprio reacionarismo que se desavergonhou definitivamente em 2018 para jamais voltar ao armário. Ali, como sabemos, quase 58 milhões fizeram de Jair Bolsonaro presidente.

A mesma pesquisa Datafolha traz um outro resultado que tende a sustentar o meu ponto: pouco mais de metade (51%) da população diz concordar totalmente ou em parte que “comerciais com casais homossexuais devem ser proibidos para proteger as crianças”. Para os que não se recordam, devo lembrar que Jair Bolsonaro e seus assessores foram brilhantes ao converter a homofobia explícita de Bolsonaro em uma homofobia velada calcada na falácia da proteção das crianças contra “induções homossexuais”. Daí vieram a chamada ideologia de gênero, mamadeira de piroca, livro do adversário supostamente legitimando o incesto e tantas outras mentiras.

Jair Bolsonaro deixou de dizer que preferia ver um filho morto em um acidente ao vê-lo “em companhia de um bigodudo” para se declarar um não-homofóbico que apenas defendia nossos vulneráveis. Por que foi uma tática brilhante? Porque entendeu precisamente que o preconceito brasileiro alargado nunca pode ser explícito, mas disfarçado. Exercido na hipocrisia social. O sujeito diz que não tem nada contra gays, mas gays devem fingir que não são gays, seja no cinema, seja na televisão, seja nas praças de shoppings, seja na rua. Podem ser o que quiserem, contanto que escondidos. Qual o melhor escudo para o exercício dessa hipocrisia do que usar criancinhas indefesas que podem ser dominadas pelo “mal do homossexualismo”?

Esse padrão não se distingue de outras formas de preconceito e discriminações a outras minorias políticas, sejam elas mulheres, negros, pobres e indígenas. O pavor do comunismo na verdade é um pavor de que determinados padrões de desigualdades e injustiças caminhem o percurso de uma maior simetria de igualdades políticas e, também, sociais. Coisa que qualquer liberal digno da denominação defenderia, principalmente diante das circunstâncias contemporâneas.

Para concluir: o que essa pesquisa demonstra, dentre outras coisas, é que a agenda moral conservadora e reacionária que foi determinante para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 continua tendo um apelo político-eleitoral expressivo. E será explorada, seja sob o guarda-chuva da polissemia do termo “comunismo”, seja sob a justificativa de defesa da inocência de nossas crianças (que pode estar embutida na própria noção de comunismo), para ficarmos só em dois exemplos. Sabe-se lá com qual efeito, mas esta coluna tende a recomendar que isso não seja subestimado, como foi em 2018. Vejam onde fomos parar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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