

Opinião
Mau agouro
Quando acordarmos, veremos que o mundo globalizado não era assim tão mau. Havia ao menos uma agenda de cooperação. O que vemos nascer é bem pior


A guerra continua e o preço da paz vai ficando cada vez mais alto. O espetáculo de destruição e de violência parece ter enevoado cada vez mais a regra básica de discriminação, que impõe a distinção entre civis e combatentes. A ambição do direito internacional de impor regras mesmo durante o conflito armado, a que se convencionou chamar de jus in bello, aparece-nos agora como utópico, se não ilusório. Regresso a Clausewitz: “a guerra é um ato de violência sem limites”, durante o qual é preciso evitar o perigo dos “erros devidos à bondade humana”. A guerra da Ucrânia parece cada vez mais uma guerra do século XIX. A prazo, não nos podemos esquecer de somar o direito internacional às vítimas desta guerra.
A paz será sofrida. A paz é sempre um compromisso e ele será mais difícil de se negociar com mais destruição, mais crueldade e mais violência. Como fazer a paz em cima de tantos mortos? Quem se atreverá? Se a guerra é o inferno, a paz negociada com concessões mútuas parece ser uma traição aos que deram a vida pelos seus países. E, no entanto, uma certeza temos: nem o inimigo deixará de existir nem a vontade de combater se desvanecerá tão depressa. Este é o rasto da guerra e nunca houve outro: ressentimento, ódio e desejo de vingança que durará por gerações. Nada de bom na frente oriental.
A retórica política europeia segue a opinião pública, que parece cada vez mais afastada de qualquer interesse pela paz. Boris Johnson, dizem as televisões europeias, “salientou que qualquer tentativa de resolver o conflito agora só causaria instabilidade duradoura”. A crítica parece dirigida ao presidente francês, Emmanuel Macron, que insiste em manter um canal de diálogo com Moscou. Sinal de fraqueza e de desunião, sugere o primeiro-ministro inglês. Indagado sobre como e quando essa “estabilidade duradoura” poderá ser alcançada, responde que a única coisa a fazer agora é apoiar a Ucrânia. Muito bem, compreendo. Mas talvez seja mais digno deixar de fazer apelos ao combate quando não estamos na linha da frente.
Essa decisão compete aos ucranianos, não aos ingleses. Apoiar a Ucrânia não é impor-lhes um caminho, seja num sentido, seja no outro. Apoiar a Ucrânia é ajudá-los a seguir o caminho que escolherem fazer. Qualquer que seja, vai ser um caminho duro e sofrido.
Seja como for, a mudança política na ordem mundial será profunda. As sanções econômicas adotadas pelo Ocidente contra a Rússia exprimem um cenário de duplo mundo, muito semelhante ao que vivemos na Guerra Fria. Um mundo liderado pelos EUA, tendo os parceiros do G7 como aliados juniores. Um outro mundo liderado pela China, tendo a Rússia como aliado. Neste momento, os aviões europeus e norte-americanos não voam para a Rússia, nem os russos para o Ocidente. Os mundos financeiros estão em vias de ser divididos pelas interdições impostas no sistema de pagamentos.
O mundo olímpico não escapou, impedindo os atletas russos de competir com os ocidentais. Nem o futebol. Não é difícil antecipar que o mesmo acontecerá em breve às redes sociais e às comunicações. É um duplo mundo real, e um duplo mundo virtual. Tudo isto está a acontecer a uma velocidade perturbadora e sem ninguém que seja capaz de fazer qualquer sugestão de alternativa. Como muitas vezes acontece na história, quando finalmente acordarmos veremos que, afinal, o mundo em que vivíamos não era assim tão mau. O que vemos nascer é bem pior.
Por estes dias, em Lisboa, as Nações Unidas discutem o problema dos oceanos. Todos os países concordam com a urgência de enfrentar o problema em escala global. O mesmo é válido para as alterações climáticas, para a regulação financeira, para a regulação digital. O mesmo é válido para a pobreza, para a saúde pública, para as migrações, para os refugiados. Ainda vamos ter saudades do mundo globalizado em que vivíamos. Com todos os seus defeitos, havia ao menos uma agenda de cooperação.
Enfim, a Colômbia elegeu o seu primeiro presidente de esquerda na sua história e, em outubro, o Brasil terá eleições. Talvez a América Latina nos traga alguma coisa nova. Na frente oriental da Europa, nada de bom há a reportar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mau agouro”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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