Ana Paula Lemes de Souza

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Doutoranda em Direito na FND/UFRJ. Pesquisadora, escritora, ensaísta, professora e advogada.

Opinião

Massacres em Palimiu, Jerusalém e Jacarezinho são marcas da atualidade

As questões ecológicas, o neocolonialismo e as políticas de morte são graves questões postas

Ataque de Israel contra palestinos. Foto: MOHAMMED ABED / AFP
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O que une o genocídio policial em Jacarezinho, os ataques de garimpeiros à comunidade Palimiu, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, os ataques dos colonos israelenses, em Jerusalém, para além do sangue derramado?

Como entrelaçar a cegueira proposital do Exército, da Polícia Federal, do Ministério Público, da Funai e, no caso de Jerusalém, da comunidade internacional sobre o Estado israelense?

Como pensar a necropolítica bolsonarista da cloroquina e da covid-19, o etnocídio e a destruição ambiental transformada em projeto político de maior valoração, colocando em risco o nosso futuro comum?

Como pensar o impensável do PL 3.729/2004, o pai de todas as boiadas, que extingue a necessidade de licenciamento ambiental para projetos impactantes no Brasil, discutido na Câmara dos Deputados em meio à pandemia do coronavírus, problema gestado no seio da catástrofe climática, que já soma tantos cadáveres?

Como não normalizar os absurdos, não acostumar os olhares com as balas, com os sangues, com os ataques, com os cadáveres, que brotam todos os dias sob nossos pés? Como não morrer aos poucos, junto com esses muitos outros, não nos permitindo acostumar com o espetáculo diário de morte?

Como olhar para os mundos, tantos e plurais, com responsabilidade ética e nos colocar, a partir de nossa própria precariedade, como agentes de transformação? Como não normalizar o massacre, não fechar os olhos para não ver os corpos devastados no chão e não tapar os ouvidos para não ouvir as balas e foguetes que ressoam do outro lado do planeta, estalando a distâncias oceânicas?

Como, ao mesmo tempo, não sofrer de paralisia e não normalizar o massacre? Como reagir a essas restrições, cada vez mais constantes das nossas próprias condições de vivência, ou melhor, como viver uma vida digna de ser vivida, sem deixar de responder aos absurdos do tempo presente?

Protesto em razão do massacre em Jacarezinho. Foto: Mauro Pimentel/AFP

Como responder ao sofrimento daqueles que nos são próximos, mas, também, dos que nos são distantes? Como reagir ética e esteticamente ao corte de verbas das universidades públicas, à falta de vagas nas UTIs e ao freak show do colonialismo contemporâneo?

Se a paralisia é um construto político, uma forma de surdez momentânea, como não ensurdecer diante dos gritos das vozes que ainda insistem em gritar, mesmo sendo potências roucas, não ouvidas em sua própria vizinhança? Como reagir à opressão, sem que ela se apodere de nós, seja por paralisia ou por loucura, se os desafios são grandes e parecem mesmo infindáveis?

O genocídio dos favelados em Jacarezinho, o etnocídio dos Yanomamis, os palestinos impedidos do acesso à Jerusalém pelo estado de Israel: de que lado vieram as palavras de ordem da abertura dos tiros, as balas no território amazônico e as bombas em Gaza?

Que tipos de “conflitos” são esses, noticiados pela mídia, que transforma política de morte em falsa neutralidade? No território Yanomami, o etnocídio histórico e a defesa do território é transformado em “conflito entre indígenas e garimpeiros”. No genocídio da operação policial em Jacarezinho, a morte normalizada nas favelas é defendida sob o argumento de “coibir o tráfico”, mesmo descumprindo regras do Supremo​. Em Jerusalém, Israel é apresentado “se defendendo” de ataques dos palestinos, apesar da expropriação de direitos que estes vêm sofrendo há longa data. Como lidar com essa pseudo-neutralidade que corrobora e reforça o lado do colonizador, do opressor, daquele que se incomoda com a diferença?

Jacarezinho, Palimiu e Jerusalém: todos esses lugares são profundamente locais, porque provocam o senso de nossa responsabilidade ética. As experiências de morte que os eventos abrigam não são, necessariamente, professorais. Elas nos exigem disposição política para abrirmos ao senso de responsabilidade ético e coletivo e entendermos que há, em todos esses eventos, a aliança perigosa e arriscada da abertura ao outro, aos problemas do outro, que são, também, os nossos problemas.

Ouvir Jacarezinho, Palimiu e Jerusalém nos faz dar conta da dimensão coletiva da precariedade de nossas existências compartilhadas e de nossas próprias corporeidades, necessariamente, relacionais.

As questões ecológicas, o neocolonialismo e as políticas de morte neoliberais devem ser pensadas exatamente desse lugar: como pensar a nossa própria vulnerabilidade coletiva e, ao mesmo tempo, dar conta de nossa experiência e existência política?

Embora haja mais perguntas do que respostas, foi preciso fazer a escrita sangrar. E se ela é sangra e agudiza, é porque o texto responde a algo, mesmo que por perguntas. Responder ao tempo presente é o que nos faz, cada vez mais, dimensionar a nossa (co)existência, ancorada, necessariamente, na relacionalidade.

Às vezes, compartilhar sangramentos faz parte desse jogo sutil, que é a vida coletiva, ainda mais quando ela dói. Falar, quando o projeto é calar, já é alguma coisa, mesmo que tímida: não paralisar as vocalizações e responder à caneta ou ao teclado, que irrompe junto com nossas pulsões.

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