



Opinião
Marco temporal e a farsa da ‘conciliação’ no STF
A inconcebível armadilha jurídica promovida pelo STF opõe o direito fundamental indígena e o direito civil de explorar terras como um bem econômico


A pressão da bancada ruralista, financiada pelo capital especulativo em terra e mineração que avança agressivamente sobre os territórios indígenas, conseguiu criar um absurdo jurídico: uma “Câmara de Conciliação”, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, para que propostas legislativas, declaradas como expressamente inconstitucionais pelo próprio STF, sejam utilizadas para promover a mercantilização das terras indígenas e a negociação de direitos fundamentais constitucionais inegociáveis.
A inconcebível armadilha promovida pelo ministro Gilmar Mendes, no STF, está sendo tratada como uma “conciliação” entre um direito fundamental indígena, protegido pelo artigo 231 da Constituição Federal, que garante a terra tradicionalmente ocupada para a reprodução física, biológica, cultural e social dos povos indígenas, e um direito civil, que prevê à propriedade individual explorar terras como um bem econômico. Ela vem acompanhada de violentos ataques de milícias rurais no campo, em todo o Brasil: contra os Kaiowa e Guarani, no Mato Grosso do Sul; contra os Ava-Guarani, no Paraná; contra os Pataxó Hãhãhãi, no sul da Bahia; e contra os Munduruku, no Baixo Tapajós, entre outros lugares que foram retratados com precisão pelo Conselho Indigenista Missionário em seu mais recente relatório
Estes ataques evocam as antigas milícias bandeirantes do período colonial, que eram impelidas a agir sob o pretexto de “guerras justas”, carregando falsos papéis apresentados como supostas autorizações dos poderes legislativos locais. Esse dejà vu foi abertamente lembrado pelo igualmente ministro do STF André Mendonça, que justificou, em seu voto no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, a aplicação do Marco Temporal de 1988 como demarcador legitimador da invasão sobre as terras indígenas, algo equivalente ao violento “direito de conquista” ao qual ele se referiu expressamente. O “direito de conquista”, nunca é demais lembrar, é a forma mais brutal de justificação para a subjugação de um povo, autorizando a tomada violenta das terras e dos corpos, do saque e do estupro, do assassinato e do roubo das riquezas, que mesmo durante o período da “conquista” europeia das américas já era criticado por juristas e a sociedade da época, frente ao direito do indigenato como um marcador civilizatório.
Troque-se a espada pelo fuzil, e o cavalo pelo trator e a caminhonete, e a descrição de Frei Bartolomé de las Casas, no século XVI, pode servir para o que tem sido praticado por milícias ruralistas contra os Kaiowá-Guarani no MS: “os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil”. Ou, como descreveu de forma precisa a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) numa rede social: “Matar e roubar para conquistar”.
A cruzada ruralista contra as terras indígenas é agora financiada pelo capital internacional em sua busca voraz por terras e recursos naturais. Estamos assistindo a mais uma etapa do processo global de grilagem, à sanha das mineradoras que visam extrair as últimas reservas disponíveis, e de outras atividades especulativas, a exemplo do turismo predatório. Processos semelhantes, em contextos sociais e jurídicos diferentes, têm sido mobilizados contra os direitos dos povos originários, como no México ou na Colômbia, onde mesmo protegidos por direitos constitucionais, eles são permanentemente assediados por forças paramilitares e o lawfare.
Sob qualquer ângulo, é inaceitável que o judiciário brasileiro – a quem cabe proteger direitos, sobretudo os fundamentais e coletivos – crie espaços para a sua negociação e, consequentemente, para uma equivocada equivalência entre invadidos e invasores. Se esses acordos espúrios forem acolhidos, ocorrerá um tremendo retrocesso não apenas para os direitos dos povos indígenas, mas para os direitos de toda a sociedade brasileira.
Por outro lado, não obstante a relevância dos povos indígenas para a chamada justiça climática e os pactos para adaptação à emergência climática, não se pode reduzir o tratamento dos seus direitos a essa ótica. Não se trata de suspender negociações sobre direitos originários, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis “em tempos de emergência climática” ou de erosão da biodiversidade, mas de não aceitá-las em tempo algum! Não pode prevalecer uma relação funcionalista com o direito para assegurar a existência e o direito constitucional ao território tradicionalmente ocupado. Do mesmo modo, admitir haver alguma margem para negociação no tema é um menoscabo aos direitos indígenas.
Alguns anos atrás, em uma brilhante entrevista, o intelectual Kaiowá-Guarani Anastácio Peralta explicou a dimensão existencial do conflito: “nós vamos voltar para aquela terra porque nós pertencemos àquela terra. É muito diferente deles [ruralistas]: eles acham que a terra pertence a eles”
Por pertencerem à terra e terem com ela uma relação tradicional de ocupação, os povos indígenas não haverão de capitular. Mas a questão que persiste é: até quando a sociedade brasileira e a comunicade internacional tolerarão a crueldade do capital e os seus jogos de poder sanguinários? É possível controlar a ganância e a sanha de quem come o planeta como se ele fosse infinito?
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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