

Opinião
Marcas da maldade
Bolsonaro incitou a quebra de tabus indispensáveis para o convívio social. A pacificação do País levará tempo


Já escrevi em uma de minhas colunas em CartaCapital que a banalidade do mal, tal como a compreendeu a filósofa Hannah Arendt, não tem nada a ver com a banalização da maldade. O primeiro indica o descompromisso de alguém – um torturador, por exemplo – em relação aos crimes que pratica. Ao ser julgado no pós-Segunda Guerra Mundial, o carrasco nazista Adolf Eichmann alegou que “apenas cumpria ordens” de seus superiores, atitude classificada por Arendt como a banalidade do mal.
Posta essa diferença, quero abordar neste texto alguns acontecimentos tenebrosos, no Brasil pós-Bolsonaro, que tomo a liberdade de chamar de “banalização da maldade”. Todos eles têm a ver com a quebra – apregoada e exaltada pelo ex-presidente – de um tabu essencial para o nosso convívio em sociedade: o da dignidade do outro, tanto física quanto moral.
Esse tabu foi quebrado por Bolsonaro em numerosas ocasiões. Dizer a uma deputada que só não a estupraria porque ela “é muito feia”, além da grosseria do insulto, aponta para a possibilidade de o então parlamentar, que depois se tornaria o mandatário da nação, violar corpo alheio, seja de uma colega deputada, de uma prostituta ou de um presidiário. Vale lembrar que, desde a ditadura, a tortura tornou-se uma prática corriqueira nas cadeias brasileiras – assim como, em casos mais hediondos, a morte e o desaparecimento dos corpos das vítimas. A anistia não erradicou o mal.
O longo introito dessa coluna pretende abrir espaço a reflexões sobre um sintoma social que persiste, mesmo após a derrota eleitoral do adulador de torturadores. A violência social no Brasil, desde 2019, vem aumentando.
Não que ela seja um fato novo: um país que escravizou africanos durante três séculos e meio – foi o último das Américas a abolir a escravidão – inscreveu a tortura e o racismo em sua história. Esse mesmo país passou, ao longo do século XX, por duas ditaduras, separadas por apenas 19 anos: o Estado Novo de Vargas, entre 1937 e 1945, e o regime militar que perdurou por 21 anos, de 1964 a 1985. Foi quando a prática da tortura, a pretexto de obter informações dos “terroristas”, generalizou-se tanto nos presídios quanto nos quartéis. E os torturadores jamais foram punidos.
Mas a era Bolsonaro aperfeiçoou a violência social brasileira. Agora, os civis também se comprazem em praticá-la. Leio, em um único artigo de jornal, que um garoto de 15 anos foi morto a facadas e dois outros ficaram feridos em um colégio de Poços de Caldas. O assassino esfaqueou a esmo os colegas na saída da escola. A prefeitura da cidade mineira limitou-se a exprimir solidariedade às vítimas… No Paraná, um rapaz de 21 anos atacou a tiros uma estudante e feriu outro jovem. Foi morto na prisão. Em São Paulo, um aluno de 8º ano do fundamental matou a professora de Ciências, de 71 anos, e deixou outros cinco feridos em março passado.
As redes sociais também se tornaram ambientes perigosos. Leio na Folha de S.Paulo de 15 de outubro que o Twitter abriga comunidades que incentivam as modalidades mais extremas de violência. O mesmo vale para a plataforma de vídeos TikTok. Os gestores das big techs atuam como se esses lugares virtuais pudessem ser terras sem lei, apartadas da ordem legal.
Será que esses crimes gratuitos não têm relação com os quatro anos em que fomos governados por um sujeito que incentivou o porte de armas e posava para fotos fazendo, com os dedos da mão, imitações de arminhas prontas para atirar em alguém? Sim, o gesto com as “mãozinhas armadas” é infantil, mas a infantilidade, num adulto capaz de matar, é perigosíssima.
O governo Bolsonaro foi devastador para um país que, antes de sua gestão já era violento, como comprovam o genocídio indígena, os três séculos e meio de escravidão e as duas ditaduras do século XX. Talvez por isso tenha sido ele o primeiro presidente a não conseguir se reeleger. Aleluia.
A marca da maldade deixada por sua gestão vai, porém, nos custar muito tempo e esforço, até que perca força e o País volte a se pacificar. Bolsonaro quebrou numerosos tabus. A frase pode soar progressista, parece ser arrojado um governo que quebra tabus. Só que não: Bolsonaro incitou a quebra de tabus indispensáveis para o convívio em sociedade. O aumento da violência ocorrido durante o período de seu (des)governo revela a importância de se manter os tabus que protegem a dignidade e a integridade, física e mental, nossa e de todos os nossos semelhantes. •
Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Marcas da maldade’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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