Antonia Quintão

Presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, pós-Doutora pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo. Também é pesquisadora no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa e consultora de Diversidade e Inclusão nas Organizações.

Opinião

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Maquiagem corporativa

Quando uma empresa diz não ter dados sobre a participação das mulheres negras em cargos de chefia, ela já expõe a fragilidade do seu compromisso com a diversidade racial

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Foto: Janine Moraes/MinC
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O Estado brasileiro e toda a sociedade civil têm o dever de zelar pelo cumprimento da Constituição e a obrigação de garantir que a população negra tenha assegurado o seu acesso à cidadania plena e à condição de cidadãos livres e dignos. Não há como garantir isso sem enfrentar a necropolítica, que tem permitido a violação dos nossos direitos inalienáveis e tem transformado as pessoas negras em seres descartáveis e alvos preferenciais da violência seletiva que caracteriza a sociedade brasileira.

Por essa razão, a primeira grande luta das mulheres negras é pela vida. Representamos quase 28% da população de um país de maioria negra, mas lideramos os piores índices socioeconômicos e as trágicas estatísticas da violência. Trabalhar é condição de sobrevivência, pois precisamos alimentar, educar e cuidar dos nossos filhos e frequentemente ajudamos nos cuidados dos sobrinhos, netos, irmãos, pais, avós. Somos historicamente as provedoras e cuidadoras de nossas famílias.

Quando me convidam para falar sobre diversidade racial, equidade e inclusão, é comum receber a informação de que esse processo já está em andamento naquela organização. Costumo, então, fazer ­duas perguntas: Quantas mulheres negras trabalham aqui? Quais são os cargos que elas ocupam? E as respostas costumam ser bastante semelhantes: “Não temos um número preciso” ou “menos que o ideal, mas pretendemos ampliar”.

A inexistência de qualquer dado, diagnóstico ou pesquisa já revela a fragilidade do compromisso da empresa com a temática. No livro O Pacto da Branquitude (Cia. das Letras), a psicóloga Cida Bento nos explica com muita competência que, apesar do discurso a favor da diversidade e da inclusão, os processos seletivos são atravessados por um racismo não verbalizado, a garantir que os melhores cargos, aqueles com maior visibilidade, prestígio social e remuneração, permaneçam monopolizados por candidatos não negros. Quando as mulheres negras são recrutadas majoritariamente para cuidar da limpeza ou da cozinha e os homens negros para a área de segurança, significa que o processo de seleção precisa ser avaliado, os critérios repensados e os selecionadores preparados para não reproduzir os estereótipos e os preconceitos do senso comum.

É igualmente fundamental assumirmos a responsabilidade de acompanhar, verificar e exigir que as escolas das nossas crianças cumpram a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, tendo em vista que a educação brasileira jamais enfrentou o racismo e muito menos tentou combatê-lo. Hoje, sabemos que a educação precisa ser necessariamente antirracista. Caso contrário, contribuirá para o fortalecimento do racismo estrutural.

Infelizmente, ainda temos muitos livros didáticos que promovem um “epistemicídio”, ou seja, o apagamento ou a invisibilidade da história, da cultura, das lutas e das tradições dos povos que foram alvo da exploração colonial, como os africanos, indígenas e seus descendentes. Podemos citar, como exemplo, a tentativa de minimizar a dimensão violenta, destrutiva e criminosa da escravidão com a divulgação de certo discurso que afirma a sua existência também no continente africano.

De forma alguma. No continente africano existiam os jonyas, que tinham um estatuto completamente diferente do escravizado do século XVI. O jonya (do termo mande jon, que significa cativo) não podia ser cedido, pois pertencia a uma categoria integrada à classe dominante. Era um cidadão exclusivo do Estado. Tinha o direito de possuir a maior parte do que produzia. Muitos alcançavam algum poder e construíam fortunas. Já o escravizado era privado de todos os direitos, submetido a todas as formas de violência, transformado em mercadoria que poderia ser cedida, negociada ou descartada. Havia um comércio de seres humanos visando o lucro.

Para saber mais sobre a África, sugiro fortemente a leitura do livro História Geral da África, V: África do Século XVI ao XVIII, editado pela Unesco e organizado pelo historiador queniano Bethwell Allan Ogot. Em particular, do Capítulo 2, de autoria do senegalês Pathé Diagne. Toda a coleção está disponível gratuitamente em PDF na Livraria Digital da Unesco.

Ao encerrar esta coluna, quero destacar a importância do Geledés – ­Instituto da Mulher Negra. Ao longo dos seus 36 anos, ele tem honrado a nossa ancestralidade, dando continuidade ao seu legado de resistência, de luta e de enfrentamento ao racismo e às suas mais diversas formas de violência, que cotidianamente atenta contra os direitos humanos e a dignidade da população negra. Pela sua coerência e compromisso, a importância e o significado de Geledés já ultrapassaram a cidade de São Paulo, o Brasil, e tem se fortalecido cada vez mais no cenário internacional. •

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Maquiagem corporativa’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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