

Opinião
Mais do que grave
O diagnóstico sobre o Ministério da Saúde realizado pelo governo de transição mostra que estávamos, de fato, caminhando para o caos


O retrato que emerge do diagnóstico sobre o Ministério da Saúde realizado pelo Grupo Técnico responsável pela área do governo de transição é o de verdadeiro caos. Não se trata, todavia, de uma novidade. Basta, afinal de contas, considerar a forma como atuou e continua se portando o órgão em relação à pandemia de Covid-19.
O diagnóstico atesta aquilo que vimos alertando aqui em diversas oportunidades. Temos mais de 690 mil vítimas fatais da Covid-19 e, é importante relembrar, 11% dos óbitos mundiais – embora representemos apenas 2,7% da população. Isso diz muito sobre a forma pela qual o governo brasileiro enfrentou a mais grave emergência sanitária dos últimos cem anos.
A pandemia é também o espelho da deterioração na situação de saúde em curso no País. Desde o golpe de 2016, diversos indicadores estão, progressivamente, piorando. Temos redução da cobertura de todas as vacinas, aumento da mortalidade materna, estagnação da mortalidade infantil e aumento das internações de bebês com desnutrição grave, fenômeno que é expressão do descuido generalizado com a primeira infância e do retorno da fome a assolar as famílias brasileiras.
Associada a esse quadro, observou-se a diminuição do acesso dos pacientes em todo o País à rede de cuidados em saúde. Houve uma diminuição acentuada de consultas, cirurgias e procedimentos diagnósticos e terapêuticos realizados pelo SUS, retardando o início do tratamento de doenças como as cardiovasculares e as neoplasias.
Tampouco houve cuidado especial diante da explosão de casos de transtornos mentais e uso abusivo de álcool e outras drogas. O resultado é o acúmulo de pacientes em filas intermináveis e a busca inaceitável de atendimento nos serviços de urgência, superlotados e inadequados para o perfil dos cuidados necessários.
Esse cenário decorre do desmonte de políticas do Ministério da Saúde que afetam o funcionamento de diversas áreas do SUS, expressando retrocessos institucionais, orçamentários e normativos. Mas decorre, sobretudo, da postura autoritária e centralizadora adotada pelo governo Bolsonaro, que substituiu a gestão interfederativa cooperativa e solidária por um federalismo de confrontação.
O enfraquecimento da capacidade de coordenação nacional do SUS, a falta de articulação de políticas e programas de saúde e a fragilização da autoridade sanitária nacional resultaram não só em uma resposta débil à pandemia, mas na desestruturação de políticas e programas bem-sucedidos, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI), Atenção Básica, Mais Médicos, Farmácia Popular, DST-Aids, Saúde Mental, Samu e Saúde da Mulher, entre outros.
Descobriu-se, agora, que nem sequer a programação anual de aquisição de vacinas e medicamentos, tarefa básica na rotina do Ministério da Saúde, foi feita até o momento. Até o último mês do ano, nenhuma solicitação de vacinas chegou ao Instituto Butantan e ao BioManguinhos, laboratórios públicos que fornecem a maioria dos imunizantes para o PNI.
O panorama é ainda mais desalentador quando se analisa o Orçamento do Ministério da Saúde para 2023. A pasta já havia perdido, entre 2018 e 2022, em razão da Emenda do Teto, quase 60 bilhões de reais. O orçamento de 2023 enviado pelo governo Bolsonaro e aprovado pelo Congresso cortou 12,4 bilhões de reais de ações como Farmácia Popular, aquisição de vacinas, medicamentos para tratamento de HIV/Aids, hepatites e câncer, bolsas de médicos residentes e saúde indígena, entre outras. Isso tudo para abrir espaço para o orçamento secreto.
Sabíamos que a situação era preocupante, mas medidas como essas indicam que estávamos caminhando para o caos. Para além da recomposição discricionária, urge a necessidade de garantir aporte adicional de mais 12 bilhões de reais para a recuperação do PNI, incorporação de medicamentos, expansão do Farmácia Popular, apoio aos hospitais filantrópicos, estímulo ao complexo econômico-industrial da saúde, estruturação de redes do câncer e desenvolvimento de medidas para a redução de filas.
Daí a importância da aprovação da PEC Emergencial, que poderá proporcionar 22,8 bilhões de reais a mais no orçamento da Saúde. Só assim conseguiremos garantir minimamente o acesso ao sistema de saúde e mais dignidade para os mais de 170 milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mais do que grave”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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