Gustavo Freire Barbosa

[email protected]

Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

Lula, Venezuela e o cinismo dos democratas da vez

No fim das contas, a revolta contra as afirmações de Lula nada tem a ver com a defesa da democracia

Foto: Ricardo Stuckert/PR
Apoie Siga-nos no

Causou alvoroço a declaração de Lula acerca da democracia na Venezuela. Não poderia ser diferente: qualquer declaração que não se alinhe à lógica preguiçosa da “ditadura x democracia” entra, inevitavelmente, na linha de fogo da imprensa comercial e de seus editoriais apaixonados.

Ao falar que o conceito de democracia é relativo, Lula chamou atenção para o fato da Venezuela ser um país onde consultas à população e eleições são realizadas em número maior que no Brasil e, muito certamente, que em qualquer país do Ocidente. O Estadão, em editorial repleto de gracinhas, concluiu que esta afirmação do “Einstein petista” é um “deboche com os que sofrem sob o tacão de Maduro”.

Mas antes do “tacão de Maduro” o regime venezuelano já era alvo de questionamentos, mesmo, convém repetir, estando na vanguarda da realização de plebiscitos e processos eleitorais, como reconheceu ninguém menos que Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA.

Lula está certo. Se o conceito de democracia não fosse relativo, Chávez, entusiasta da democracia direta, não teria sido acusado de ditador por inúmeras vezes. O golpe que sofrera em 2002 também não teria sido recebido com festa pelos editorialistas, os mesmos que abraçaram, sem pudor, a autodeclaração de Juan Guaidó como presidente. Ao mesmo tempo, haveria questionamentos quanto à democracia no Reino Unido, onde o chefe de Estado não é eleito e seu parlamento tem uma câmara alta, a Câmara dos Lordes, instituição de origem feudal composta por autoridades religiosas e integrantes da nobreza britânica, todos nomeados pelo monarca da vez (também sem eleição, portanto).

Após citar Maduro, Chávez, Ortega e Fidel Castro, o Estadão conclui que “para qualquer democrata genuíno, em qualquer lugar do mundo, a democracia é o que é – sem relativismos”. Por isso, Lula não teria qualquer credencial de democrata. Mas não foi o atual mandatário que se alinhou às nada democráticas agendas do lavajatismo e do bolsonarismo, reboques da imprensa empresarial durante muito tempo. Sua prisão, arbitrária até o talo, e sua interdição eleitoral quando era favorito não contaram com a indignação dos revoltados de agora.

Tampouco o fato do Banco Central estar completamente blindado da vontade popular é motivo de preocupação, apesar de, no mesmo editorial, ser realçado que democracia é a “a supremacia da vontade popular”. No Brasil, o povo elegeu um programa econômico cuja aplicação encontra entraves no fato de seu Banco Central estar sob o controle de grupos privados. Que democracia é essa?

Além do neoliberalismo e de sua natureza profundamente antidemocrática, os manuais tradicionais de Ciência Política não raro excluem o imperialismo do checklist acerca do que é democracia ou não. Como ter liberdades civis plenas enquanto se enfrenta sabotagens e pesadas sanções econômicas, fechando a porta de parcerias diplomáticas e comerciais? Constituições burguesas, como a nossa, preveem o estado de sítio e o estado defesa para lidar com situações do tipo, ocasião em que tais liberdades sofrem restrição. Por que, então, não colocar no balanço a interferência dos EUA e a instabilidade que causam em países como Cuba, Venezuela e Nicarágua?

Claro que o fato da dinâmica neocolonial e imperialista formatar as relações geopolíticas não deve impedir críticas a excessos e coisas do tipo. Mas tirá-la da mesa termina por revelar as reais intenções dos democratas de plantão: atentar contra o fortalecimento das relações entre os países do Sul Global, em particular dos latino-americanos e dos BRICS, recolocando-os na órbita dos EUA, que neste momento fazem todos os esforços possíveis para conter a China.

No fim das contas, a revolta contra as afirmações de Lula nada tem a ver com a defesa da democracia. “Minha preferência se inclina na direção de uma ditadura liberal, ao invés de um governo democrático que não pratique o liberalismo”, disse Friedrich Hayek, destacado teórico do neoliberalismo.

É por aí. Só falta sinceridade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo