Paulo Nogueira Batista Jr.

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Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Lula e seus adversários

Os opositores formam um grupo heterogêneo, o que facilita o combate

Tática. O petista vem se concentrando no isolamento do bolsonarismo. O mais provável é a repetição em 2026 da ampla aliança de 2022 – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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O objetivo fundamental dos adversários políticos de Lula é claro e cristalino: enfraquecê-lo para que chegue derrotável à eleição de 2026. Derrotável significa, por um lado, passível de ser substituído por alguém mais palatável ou, ao menos, suscetível de ser pressionado a fazer concessões importantes. Obviamente, os adversários formam um grupo bem heterogêneo, o que facilita o seu enfrentamento. Lula, com sua vasta experiência e grande habilidade, sabe aproveitar-se dessas diferenças para avançar.

Para simplificar, vou distinguir neste artigo quatro grandes blocos políticos, ou cinco, se incluirmos o centro-esquerda liderado pelo presidente da República. Os adversários principais são:

1. A extrema-direita, que emerge, sobretudo, depois de 2018 com a eleição de Bolsonaro.

2. A direita tradicional ou centro-direita, isto é, o establishment, os donos do poder e do capital, cuja fração hegemônica é o capital financeiro, o chamado “mercado”.

3. A direita fisiológica, o chamado “Centrão”, que não tem ideologia definida, mas controla o Congresso e age de maneira consistente, sempre procurando abocanhar pedaços de poder e recursos orçamentários.

4. Os militares, quase sempre hostis à esquerda e historicamente propensos a golpes de Estado.

As fronteiras entre os blocos políticos são fluidas. Há sempre figuras intermediá­rias, com os pés em mais de uma canoa. Com frequência, os blocos se misturam e estabelecem diferentes alianças políticas e combinações variáveis ao longo do tempo. A própria palavra “bloco” talvez não seja a mais adequada, pois passa uma sensação enganosa de solidez e uniformidade.

A Arca de Noé

Quando se critica o governo atual, e eu mesmo o faço com alguma frequência, não se deve perder de vista esse contexto político, tanto mais que Lula e o centro-esquerda, com todas as suas deficiências e limitações, são os únicos que oferecem uma perspectiva de desenvolvimento com justiça para o País.

O melhor que se pode esperar nesse cenário tão complicado é que o governo Lula consiga negociar com alguns adversários, reforçando a sua posição, sem, contudo, transigir no essencial e sem se descaracterizar. Esse requisito é fundamental, como tento explicar na sequência.

Convém, no entanto, ao presidente e aos progressistas não perder o rumo estratégico em meio às concessões

A estratégia de Lula, desde 2021 ou 2022, tem sido isolar o principal adversário, a extrema-direita. Assim ele venceu a eleição. Compôs com a direita tradicional para derrotar Bolsonaro que, em busca da reeleição, contava com a máquina do governo e a fidelidade, ou ao menos a simpatia, de uma parte muito expressiva do eleitorado. Formou-se a Arca de Noé (expressão do próprio Lula), a ampla e heterogênea coligação que venceria as eleições em 2022. Lula ganhou por pequena margem, o que sugere que fez a escolha correta.

Formou-se um governo heterogêneo, tão heterogêneo quanto a Arca de Noé. Na área econômica, a presença de neoliberais se faz sentir claramente. Não só no primeiro escalão, como também no segundo escalão dos ministérios e do Banco Central. Como a direita fisiológica controla o Congresso, Lula teve de abrigá-la na equipe e até numa instituição financeira da importância estratégica da Caixa Econômica Federal. Assim, o primeiro e o segundo escalões do governo são uma mistura indigesta de quadros do centro-esquerda, do centro-direita e da direita fisiológica.

Ao mesmo tempo, Lula busca aplacar os militares. Por isso, resolveu não patrocinar eventos de condenação do golpe de 1964, no seu aniversário de 60 anos.

A caminho das eleições de 2026

Prevalece no governo (ou assim me parece) a percepção de que a principal e mais destrutiva face da oposição continua a ser a extrema-direita bolsonarista. Imagine, leitor ou leitora, que ela volte ao poder em 2027, seja com Bolsonaro, seja com alguém por ele indicado. Não preciso falar mais nada.

O tempo dirá, mas os demais blocos não parecem ter força eleitoral para se contrapor ao centro-esquerda nas eleições de 2026. Será, provavelmente, tão difícil quanto foi em 2018 e 2022 construir uma terceira via competitiva. Assim, a aliança constituída para as eleições de 2022 tende a se repetir em 2026. Não se deve esperar que Lula faça qualquer movimento para desalojar a direita tradicional de suas posições de poder no governo. Tampouco que tente romper com a direita fisiológica. Ou que descuide das sempre problemáticas relações com as Forças Armadas.

A máscara apega-se ao rosto

Há um risco que não pode ser negligenciado: o de que o governo Lula, e com ele todo o centro-esquerda, se descaracterize e perca o rumo estratégico. E esse risco é especialmente relevante na disputa por corações e mentes com a extrema-direita.

Onde reside a força política e eleitoral de figuras como Trump, Bolsonaro e ­Milei? Em grande parte, na difusão da ideia de que eles se opõem a um “sistema”, um conjunto de instituições e interesses viciados que exclui a grande massa da população, inclusive a classe média. Na Europa, o centro-esquerda, isto é, os partidos socialistas e social-democratas, se confundiu com o establishment e copatrocinou nas últimas décadas políticas econômicas e sociais excludentes, a chamada agenda neoliberal. Assim, quem cresceu com a crise do neoliberalismo foi a extrema-direita. O centro-esquerda minguou, posto que foi visto como parte integrante desse maldito “sistema”.

O PT é a social-democracia brasileira e corre o risco de cair na mesma armadilha. Vou dizer uma coisa meio desagradável. No Brasil, de modo geral, há muito jogo de cintura e pouca espinha dorsal. O centro-esquerda não foge a essa regra. Ele acredita, ou diz acreditar, que continua fiel a seus propósitos. Que todas as concessões são um preço a pagar nas circunstâncias. As medidas cautelosas e a retórica conformista seriam uma máscara, a ser retirada quando as condições forem mais favoráveis.

Compreendo. Mas não vamos esquecer o poema de Fernando Pessoa:

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

O poema caiu como luva, não é mesmo? •

Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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