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Lula e o desenvolvimento

Para os vanguardistas do atraso, tudo que não é corte de gastos é gastança

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Ele está disposto a levar adiante um programa de reconstrução - Imagem: Marcelo Camargo/ABR
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“Compreendi, desde o início da jornada, que deveria ser candidato por uma frente mais ampla do que o campo político em que me formei, mantendo o firme compromisso com minhas origens. Esta frente se consolidou para impedir o retorno do autoritarismo ao País.”

A mediação democrática sugerida nas linhas e entrelinhas do discurso de posse do presidente Lula já sofre o assédio das falanges conservadoras e midiáticas. Matéria da Folha de S.Paulo, na edição de 2 de janeiro de 2023, adverte os leitores:

“Os discursos de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste domingo (1º) foram recebidos com ressalvas por analistas do mercado financeiro, que se preocupam com a expectativa de um governo muito interventor na economia”.

Essas manifestações têm sido repetidas nos cantos e recantos da grande mídia. São a expressão político-midiática das divergências lógicas e ontológicas sempre latentes nas sociedades modernas urbano-industriais. No Brasil, essas discrepâncias foram revigoradas pelo avanço do atraso das classes dominantes e de seus seguidores. É isso mesmo, o Avanço do Atraso.

Tais manifestações do retrocesso ocorrem mesmo depois dos fracassos e tropeções do capitalismo tutelado pelo ideário neoliberal. Em todas as regiões do planeta, é intenso o debate crítico que reavalia as concepções e procedimentos das políticas econômicas.

No dia 30 de dezembro de 2022, a revista alemã Der Spiegel publicou uma matéria sobre as desventuras do capitalismo em sua forma contemporânea. A matéria começa com o multimilionário Ray Dalio:

“Ultimamente, parecia que Ray ­Dalio não estava lendo o Wall Street Journal em sua villa de 2 mil metros quadrados pela manhã, mas sim Das Kapital, de Karl Marx. ‘O capitalismo não funciona mais para a maioria das pessoas’, diz Dalio. Até agora, o homem não foi suspeito de tendências socialistas. Ele é o criador do maior fundo de hedge do mundo, estimado em cerca de 22 trilhões de dólares”.

No mesmo dia, o site Project ­Syndicate ofereceu aos leitores um artigo de Laura Tyson, ex-chefe do Conselho de Assessores Econômicos do Presidente na era Bill Clinton. Nesse artigo, Tyson avalia os três programas econômicos de John Biden: Infrastructure Investment and Jobs Act (550 bilhões de dólares), Chips and Science Act (280 bilhões), e Inflation Reduction Act (394 bilhões).

Nos arraiais dos vanguardistas do atraso abrigados na Tropicália, a trilionária investida desenvolvimentista norte-americana receberia impropérios dos sabichões das cavernas: gastança!

Tyson escorrega ao afirmar que estas não são medidas tradicionais de gastos para estimular a demanda. Em vez disso, são investimentos do lado da oferta para aumentar a capacidade econômica dos EUA, tanto em geral quanto em setores-chave, como semicondutores e energia renovável.

Keynes ensinou que demanda efetiva é um conceito fundado no “estado de expectativas” dos que decidem a produção. Não se confunde, portanto, com o que se convencionou chamar de demanda agregada, um conceito-resultado. A interseção entre as funções de oferta e de demanda determina um ponto em que se efetivam as decisões dos empresários-capitalistas, a partir de certo estado de expectativas. Esse ponto se desloca ao longo da curva de “demanda efetiva” diante das mudanças das avaliações empresariais. Na realidade, Keynes está afirmando a interdependência entre oferta e demanda na economia capitalista. O investimento é gasto, quase sempre financiado a crédito, que amplia a capacidade produtiva. Afeta, portanto, oferta e demanda.

Na área ambiental, o Brasil tem uma condição muito favorável para receber investimentos estrangeiros

Em seguida, Tyson recupera-se e diz que “todos os três programas são baseados no modelo público-privado que tem sido crítico para a competitividade dos EUA no século passado. Eles são projetados para atrair e acelerar o investimento privado, não para substituí-lo. Assim, uma parte significativa de seu financiamento – na verdade, a maioria, no caso do IRA e do Chips – vem na forma de créditos fiscais para as empresas”.

O discurso de posse atesta que Lula está disposto a levar adiante um programa de reconstrução: “Hoje, nossa mensagem ao Brasil é de esperança e reconstrução. O grande edifício de direitos, de soberania e de desenvolvimento que esta Nação levantou, a partir de 1988, vinha sendo sistematicamente demolido nos anos recentes. É para reerguer este edifício de direitos e valores nacionais que vamos dirigir todos os nossos esforços”.

Estamos na era da hiperindustrialização. Os métodos da indústria invadiram os serviços e o agronegócio. A reindustrialização vai exigir uma estratégia mais abrangente. Temos espaços na infraestrutura, nas políticas ambientais e na transição energética se tivermos competência para montar projetos eficientes com a participação privada. Estado e mercado não se opõem, mas se complementam.

Na questão ambiental, o Brasil tem uma condição muito favorável para receber investimentos estrangeiros. Poderia emitir os Green Bonds, que seriam acolhidos ou comprados por instituições financeiras privadas do mundo inteiro, além do financiamento que poderia ser provido pelos bancos públicos internacionais

O Brasil pode apresentar projetos importantes de transição energética. Tem gente muito capacitada para isso. A Petrobras seria transformada em uma empresa de energia. Ela pode fazer isso porque tem muita competência e qualidade técnica. Ademais, é preciso olhar o cenário internacional para negociar com os prováveis parceiros na incontornável defesa do meio ambiente.

Para os economistas do mercado, a construção institucional das formas político-sociais voltadas para o desenvolvimento não deve existir, porque o mercado é o mercado em qualquer lugar. Estão apoiados em suposições que afirmam a eficiência do mercado na alocação de recursos. Não há o que fazer, não há por que gastar os neurônios, já escassos, em uma estratégia de reconstrução estrutural. Isso lembra uma série de televisão dos anos 60, Papai (o mercado) Sabe-Tudo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lula e o desenvolvimento”

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