

Opinião
Lula e a armadilha da política econômica
O governo está espremido entre as demandas do ‘mercado’ por mais cortes e as preferências do Congresso por políticas regressivas e fisiológicas


Os desafios do governo Lula 3 na economia são gigantescos. Na política econômica, a questão principal diz respeito à perda de sua autonomia, visando a implantação de um modelo de desenvolvimento inclusivo e soberano. Parte dessa perda de autonomia é resultado de condicionantes históricos: a inserção internacional do Brasil, com destaque para a abertura financeira e a dependência ampliada da trajetória das economias centrais; a consolidação do Banco Central independente e a sua captura pelo capital financeiro; um Congresso majoritariamente conservador, fisiológico e articulado com lobbies econômicos retrógrados. Outras limitações, contudo, foram autoimpostas por escolhas realizadas.
Nesse ambiente, agravado por uma conjuntura global de desaceleração econômica e pelas crescentes rivalidades comerciais e tecnológicas entre China e Estados Unidos, a autoimposição de uma política de austeridade fiscal tende a inviabilizar qualquer projeto de desenvolvimento alternativo. Essa escolha coloca a política econômica, de forma progressiva, sob o controle dos segmentos dominantes, em particular do capital financeiro.
A origem dos atuais percalços, que configuram uma austeridade mitigada, está no novo arcabouço fiscal, aprovado em julho de 2023. Seus dois objetivos principais são: reduzir a participação do setor público na economia e a promover a produção sistemática de superávits primários. O primeiro objetivo reflete uma visão ortodoxa de aumento da eficiência econômica, associada à ampliação do papel do setor privado. A diferença fundamental entre o novo arcabouço e o antigo teto de gastos é a velocidade pela qual esse ajuste do peso do setor público será realizado. Já o segundo objetivo refere-se a uma estratégia particular de redução do tamanho da dívida pública, priorizando seu pagamento total ou parcial com os superávits primários. No entanto, a história recente, com destaque para o caso da periferia europeia após a crise do Euro, demonstra o fracasso dessa estratégia.
Esses aspectos gerais negativos tornam-se ainda mais evidentes na formulação das normas específicas. A regra geral de gasto apresenta uma dimensão anticíclica fraca. Ou seja, o crescimento das despesas totais do governo estaria limitado a um percentual fixo do aumento das receitas (70%), sujeitos a um teto (de 2,5%) e um piso (de 0,6%). Para enfrentar contrações econômicas significativas, contudo, o piso é insuficiente. Outro aspecto relevante é a inconsistência no crescimento dos diferentes tipos de despesas: algumas estarão sujeitas ao teto, outras não. Em princípio, despesas como Previdência, BPC, abono salarial, educação e saúde possuem outros indexadores e fatores de crescimento específicos. No caso da educação e saúde, o crescimento está vinculado ao desempenho da receita líquida, mas sem os mesmos redutores impostos a outras áreas.
A autoimposição de uma política de austeridade fiscal tende a inviabilizar qualquer projeto de desenvolvimento alternativo
Se, por um lado, uma parcela da política social teve regras mais favoráveis de crescimento, o mesmo não se pode dizer a respeito do investimento. Apesar de medidas conjunturais para garantir um patamar mínimo no primeiro ano de vigência do arcabouço, os investimentos permaneceram na vala comum dos gastos discricionários, sem uma regra específica de crescimento. Não é difícil concluir que o cumprimento do arcabouço exigirá ou a compressão dos gastos discricionários — como os investimentos — e de outros obrigatórios sem indexação específica, ou a revisão das regras que regem os gastos indexados. Além disso, o descumprimento das regras comprometeria a credibilidade fiscal e acarretaria penalidades, como o endurecimento dos limites de aumento dos gastos.
Esta trajetória dos gastos públicos para cumprir o arcabouço viu-se acentuada pela definição das metas de saldo primário. Nesse caso, o ajuste proposto foi o de zerar o déficit no primeiro ano de sua vigência e produzir um superávit crescente a partir de então. Ou seja, para comprar credibilidade, acelerou-se a obtenção dos superávits primários. O irrealismo das metas já ficou evidente em abril de 2024, quando o governo propôs modificação nos valores propostos para 2025 e 2026, reduzindo-os em meio ponto percentual do PIB – mas, curiosamente, mantendo a meta de zerar o déficit em 2024.
O ponto a destacar, para além da celeridade do ajuste fiscal implícito nas metas de saldo primário, é a sua zeragem em 2024. A PEC da Transição viabilizou a necessária ampliação das despesas para 2023 ainda na vigência do teto de gastos. Estes gastos resultaram num déficit primário de 2,1% do PIB em 2023, definindo o tamanho do ajuste para 2024. Para realizar esse ajuste e adiar os inevitáveis cortes ou adequação do crescimento dos gastos indexados, a estratégia consistiu, num primeiro momento, em ampliar as receitas, sobretudo por meio da redução das renúncias fiscais. A intensidade dessas medidas obrigou o governo a uma negociação diuturna do governo com o Congresso, fragilizando a sua capacidade de definição em vários outros temas, inclusive nas emendas parlamentares.
Assim, as medidas para viabilizar as metas do arcabouço foram levadas a cabo em dois momentos com dois objetivos distintos: no primeiro ano, buscou-se privilegiar o aumento das receitas por meio da elevação da carga tributária líquida ou redução dos gastos tributários. Após julho de 2024, contudo, enveredou-se progressivamente pela senda do corte ou ajuste do crescimento dos gastos, em particular daqueles com regras de crescimento distintas da regra geral do arcabouço.
Os resultados obtidos não foram os esperados pela Fazenda, que superestimou as possibilidades de ampliar receitas. Para 2024, é provável que a meta seja alcançada utilizando o limite superior permitido: ou seja, um déficit de 0,5% do PIB. Esse resultado, que exclui o pagamento de precatórios e os gastos emergenciais como o Rio Grande do Sul, resultarão na ampliação das receitas (que passarão de 17,5% para 18,6% do PIB) e da contenção de gastos (que cai de 19,6 para 19,1% do PIB). Ou seja, embora 2/3 do ajuste tenha sido obtido por aumento das receitas, 1/3 do mesmo foi pelo corte de gastos, antes mesmo do polêmico pacote de novembro de 2024. Assim, em julho de 2024, o primeiro pacote da Fazenda com efeitos no mesmo ano deu início ao “pente-fino” nas despesas, concentrando-se prioritariamente na política social, incluindo o BPC, o Bolsa Família e o INSS.
Os obstáculos para viabilizar um ajuste centrado no aumento da carga tributária líquida são significativos. Um dos principais entraves é a crescente dificuldade de negociação com o Congresso, como evidenciado pela resistência à eliminação da desoneração da folha de pagamentos. Apesar de representarem cerca de 5% do PIB e poderem contribuir de modo mais decisivo para a geração dos saldos primários, os gastos tributários ficaram praticamente intocados no último pacote fiscal. Nesse âmbito, as medidas visam apenas proibir a criação de novos gastos tributários, mas deixaram o estoque intocado.
Outro mecanismo adotado para salvar a meta prometida de saldo primário em 2024 tem sido a transferência maciça de dividendos e juros sobre o capital próprio de empresas estatais para o Tesouro. A Instituição Fiscal Independente estima que essas transferências somarão cerca de R$ 60 bilhões (0,6% do PIB) em 2024, sendo aproximadamente R$ 50 bilhões provenientes da Petrobras e do BNDES. No caso deste último, a diretoria decidiu repassar ao Tesouro, como dividendos, um montante superior ao lucro operacional da instituição, complementado pelos dividendos recebidos da Petrobras e pelos créditos recuperados. Esse movimento implica a descapitalização de empresas estatais estratégicas, configurando um ônus adicional para o cumprimento das metas fiscais.
Do ponto de vista político, é mais fácil ajustar as contas públicas pela política social: ainda que às custas da piora na distribuição de renda, do aumento dos índices de pobreza e do enfraquecimento da base social que elegeu o presidente. O pacote fiscal de novembro de 2024 reflete esta lógica: promove, de um lado, um corte nos ganhos da população que tem os seus benefícios indexados pelo salário-mínimo e, de outro, uma revisão nos critérios de concessão e continuidade dos benefícios sociais. As estimativas de economia de gastos com o pacote começam com 0,2% do PIB em 2025, subindo para 0,3% em 2026 e alcançando 0,7% do PIB até 2030.
Na avaliação prospectiva do pacote fiscal, é fundamental separar a nova regra de reajuste do salário-mínimo daquelas de concessão e renovação dos benefícios assistenciais. A nova regra para o salário-mínimo enfraquece seu caráter redistributivo, tanto no impacto sobre o gasto público — onde indexa aproximadamente ¼ do total — quanto no mercado de trabalho. Diante de uma crescente desestruturação laboral, os ganhos reais do salário-mínimo têm sido cruciais para viabilizar ganhos de rendimentos, tanto no emprego informal quanto no formal. Quanto à revisão dos critérios de elegibilidade e renovação dos benefícios, essa medida só seria justificável se o objetivo fosse uma realocação para áreas com maior efetividade social. Cortar gastos sociais para ampliar o superávit primário, numa sociedade tão desigual, não é justificável – ao menos para governos progressistas.
Voltando às dimensões propriamente econômicas do pacote fiscal, a despeito de seus custos sociais inequívocos, cabe destacar a péssima acolhida de vários segmentos do mercado financeiro. Segundo newsletters de várias instituições, o problema principal do pacote estaria na sua insuficiência em entregar ajustes compatíveis com o arcabouço, tanto no que tange ao cumprimento das metas de saldo primário imediatas, para 2025 e 2026, quanto ao ajuste permanente do crescimento dos gastos.
Há neste entendimento uma dupla falácia. Primeiro, a ideia de que o descumprimento das regras propostas pelo mercado financeiro, mesmo não cumprindo estritamente o arcabouço, resultaria necessariamente em descontrole dos gastos públicos. Essa relação não é sustentada. Exercícios do Relatório de Acompanhamento da Instituição Fiscal Independente mostram que, mesmo sem o novo pacote fiscal, a observância das regras atuais de indexação dos gastos públicos resultaria em déficits primários variando entre 0,5% e 1% do PIB nos próximos dez anos. O novo pacote, longe de gerar descontrole, reduz ainda mais esses números.
A segunda falácia reside na presunção de que superávits primários factíveis no curto e médio prazo seriam suficientes para equacionar o crescimento da dívida pública. Exercícios de estabilização da dívida a partir dos parâmetros atuais relativos a tamanho, custo da dívida e crescimento econômico mostram que seria necessário um superávit primário da ordem de 4% do PIB para estabilizá-la. A rigor, isso demonstra que a trajetória da dívida atual depende predominantemente da taxa de juros implícita no seu carregamento e tem como fator atenuante o crescimento do PIB. O tamanho do superávit primário, na faixa em que é viável de ser obtido, a curto e médio prazos, tem papel menor na evolução da dívida. Ademais, a sua ampliação, em decorrência do efeito multiplicador, terá implicações negativas no mais importante fator de diluição do crescimento da dívida: o aumento do PIB.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet. Foto: Diogo Zacarias/MF
A discussão anterior traz a questão dos juros e da sua determinação para o centro do debate. A todos que não compartilham dos interesses do capital financeiro, está suficientemente claro qual o papel do Banco Central independente, vale dizer, coordenar os interesses das várias frações desse capital e pressionar o Executivo para que adote as políticas econômicas que julga adequadas. Como se viu em várias ocasiões, inclusive, na atualidade, a não observância das exigências do “mercado”, tem levado a processos especulativos – com juros e câmbio – integralmente sancionados pelo Banco Central.
Embora a capacidade de decisão do governo seja muito mais reduzida no que tange ao BC e à política monetária e cambial, sua postura tem sido bastante ambígua. Enquanto Lula se expõe e se desgasta, isoladamente, fazendo críticas corretas às decisões do BC e de seu presidente, o ministro da Fazenda e a ministra do Planejamento, com maioria no Conselho Monetário Nacional, aprovam a redução da meta de inflação. Em momentos críticos para recuperação do mínimo de controle da instituição, como o da nomeação da parcela definidora da maioria na diretoria do banco, cedem ao capital financeiro sua principal diretoria: a de política monetária.
A questão central, portanto, é a perda de controle da política econômica pelo governo. O foco da política fiscal foi deslocado para o corte de gastos, relegando a um segundo plano medidas de estímulo ou distribuição de renda. As tentativas de mitigar os efeitos distributivos negativos desses cortes, como por meio de uma reforma do imposto de renda, sofrerão fortes restrições num Congresso conservador. O governo está espremido entre as demandas do “mercado” por mais cortes e as preferências do Congresso por políticas regressivas e fisiológicas. Paralelamente, nas relações com o “mercado”, cuja ambiguidade já foi destacada, precisa lidar com um Banco Central alinhado aos interesses do capital financeiro, que atua como um crítico sistemático de suas políticas.
Tudo indica que as relações entre governo, Congresso e mercado financeiro chegaram a um ponto de ruptura. O governo vai se adaptar às regras fiscais demandadas pelo mercado? Vai ceder ainda mais ao Congresso, no seu fisiologismo e descaracterização das políticas progressistas? Em sentido distinto, é possível redefinir alianças tanto no Congresso quanto no âmbito das várias frações da classe empresarial com vistas a viabilizar politicamente um programa mínimo de desenvolvimento inclusivo e soberano? A resposta a essas questões definirá o futuro da política econômica.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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