Raisa D. Ribeiro

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Professora universitária (UNIRIO) e advogada feminista, doutoranda em Direito (UFRJ), mestra em Direito Constitucional (UFF) e especializada em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra - Portugal), pesquisadora e coordenadora do projeto Feminismo Literário.

Opinião

Linda Lovelace: o que sua história nos deixa de lição?

Você já ouviu falar sobre Linda Lovelace? Se você tinha 15 anos ou mais na década de 1970, com certeza sabe quem ela é. Considerada a maior estrela pornográfica de sua época, Linda se tornou internacionalmente conhecida ao estrelar o filme Garganta Profunda (Deep Throat), […]

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Você já ouviu falar sobre Linda Lovelace? Se você tinha 15 anos ou mais na década de 1970, com certeza sabe quem ela é. Considerada a maior estrela pornográfica de sua época, Linda se tornou internacionalmente conhecida ao estrelar o filme Garganta Profunda (Deep Throat), tendo pousado para revistas como Playboy, Bachelor e Esquire.

Garganta Profunda narra a história de uma garota que tinha o clitóris em sua garganta e que, por isso, estaria sempre ávida para fazer sexo oral com os homens. O roteiro do filme foi idealizado por Gerald Damiano ao ver Linda relaxar os músculos da garganta para enfiar todo o pênis dentro de sua boca, sem engasgar-se.

O filme foi uma produção que revolucionou a indústria pornográfica estadunidense, transformando o “pornô em chique” ao atingir uma plateia muito maior, com exibições no World Theater, cinema localizado Rua Manhattan West, n°. 49, em Manhattan, Nova Iorque.

Apesar de existirem documentários, filmes e uma obra autobiográfica sobre a sua vida, a verdadeira história por trás do fenômeno Linda Lovelace ainda não é completamente conhecida por todos. É necessário revelá-la, como forma de honrar a sua memória e sua luta contra as violências causadas às mulheres pela indústria pornográfica.

Nascida como Linda Susan Boreman, tornou-se Linda Traynor ao ser forçada ao casamento e, depois, Linda Marchiado ao escolher se casar com quem seria o futuro pai de seus filhos. Criada em família conservadora, Linda engravidou ainda adolescente e foi obrigada a dar seu filho à adoção após o término de sua gestação. Aos 20 anos, saiu de casa para morar com Chuck Traynor, com quem havia iniciado um relacionamento amoroso.

Como ocorre nos relacionamentos abusivos, no início Chuck era um completo cavalheiro, mas, em pouco tempo, se tornou extremamente agressivo, passando a agredi-la física, psicológica e sexualmente. À época Linda não sabia, mas Chuck já tinha registros policiais, por assaltos e brigas, e já gerenciado negócios relacionados à prostituição. Durante longos quatros anos, Linda viveu em cárcere privado, sendo submetida à prostituição, à pornografia e ao casamento.

Todo dia ela era estuprada, agredida, espancada, chutada, enforcada, degradada ou abusada verbalmente. Algumas vezes, tudo isso ocorria no mesmo dia.

A primeira vez em que foi forçada à prostituição, Chuck, a ameaçando com uma arma, a obrigou a se despir, a assistiu ser estuprada por 5 homens diferentes em um quarto de hotel e; ainda, ficou bravo porque ela não ter ficado excitada com isso. A partir daí, o mundo da prostituição tornou a sua realidade.

Chuck exigia que ela realizasse práticas sexuais não usuais, como gang-bangs (sexos grupais com vários homens), com pessoas urinando umas nas outras e até com animais. Sim, com animais. Linda conseguiu se livrar das tentativas com macacos e com o cachorro que Chuck havia comprado para aterrorizá-la; mas, ao ter sua vida novamente ameaçada com uma arma apontada para a sua cabeça durante toda a gravação, não conseguiu se desvencilhar de ser penetrada por um cachorro para que material pornográfico fosse produzido.

O filme Garganta Profunda levou 12 dias para ficar pronto, sendo um produto das sucessivas violências que Linda foi submetida. Em depoimento prestado na audiência pública de Mineápolis, para a aprovação da Ordenação Antipornografia naquela cidade, Linda afirmou que toda vez que alguém o assiste, está a vendo ser estuprada.

Nenhuma das dezenas de relações sexuais que participou para que o filme fosse produzido eram desejadas: estar ali não era uma escolha sua, ela não tinha outra opção. Ela ainda foi fisicamente agredida durante as filmagens: após o primeiro dia de gravações, Chuck a espancou por ciúmes, enquanto os outros integrantes da produção fingiam que não escutavam seus gritos de socorro. No dia seguinte, ao aparecer com vários hematomas na perna, a preocupação da produção destinava-se a como escondê-los, porque, caso aparecessem no filme, prejudicariam a imagem de mulher que queriam transmitir: doce e inocente, mas ávida por sexo.

Ao assistir ao filme, o espectador não consegue ter a dimensão dessas violências. Nas cenas sexuais do filme, ao olharmos para o seu rosto, chegamos a acreditar que Linda estava tendo prazer com aquelas relações sexuais, pois ela sorri. Um sorriso que aparenta ser de prazer, mas apenas aparenta: nesse caso, obtido por coação; em outras produções, mediante retribuição em dinheiro.

Linda tentou escapar algumas vezes, mas não obteve sucesso nas primeiras vezes. A cada tentativa mal-sucedida, ela era terrivelmente castigada.

Na sua última punição por fugir, Linda teve sequelas retais severas, ao ser penetrada com um dildo no ânus, até jorrar sangue por todo o cômodo, em uma sessão de sadomasoquismo realizada por uma prostituta sádica.

Somente após a sua fama, Linda conseguiu escapar de vez, passando semanas escondida, de hotel em hotel, sozinha. As perseguições e ameaças de Chuck tentando encontrá-la apenas cessaram quando elec começou a se relacionar com Marilyn Chambers (outra atriz pornográfica da época).

O que aconteceu com Linda reflete a realidade da pornografia, que usa e abusa de mulheres, que explora suas vulnerabilidades para que produções possam ser realizadas, obtendo proveitos financeiros exorbitantes. A pornografia é um negócio extremamente lucrativo: a produção do Garganta Profunda custou apenas 40 mil dólares e os produtores, após uma década de exibição do filme, alcançaram um lucro de 600 milhões de dólares.

O caso de Linda não foi uma exceção do que ocorre na indústria do sexo, sendo algo muito mais comum e rotineiro do que podemos imaginar. As estatísticas do Relatório da ONU sobre Tráfico de Pessoas constatam que cerca de 50% do tráfico humano tem por finalidade a exploração sexual de mulheres e meninas. E, diante da cifra oculta destes crimes, essa realidade deve ser ainda maior.

O caso de Linda é emblemático, não apenas por refletir a realidade da indústria pornográfica, mas também a realidade de como a sociedade reage diante dos registros de abuso cometidos por essa indústria. Ter um ato brutal, como estupro, gravado e disponibilizado como pornografia, é, sem dúvidas, uma nova forma de trauma. Mas, mesmo diante da veracidade de seus relatos, comprovados ao ser submetida a horas de exame de polígrafo para ter sua autobiografia publicada, o filme continua disponível para comercialização até os dias de hoje.

Enquanto sociedade, precisamos pensar em como tutelar juridicamente a violência real existente em produções pornográficas.

O que fazer com um filme produto de um estupro: ele deve continuar sendo exibido, os pornógrafos podem lucrar em cima dessa violência, quais devem ser as sanções aplicáveis para responsabilizá-los e como as vítimas devem ser reparadas?

Em 2022, ano que marca os 50 anos de lançamento do Garganta Profunda e 20 anos do falecimento de Linda, a pergunta que ainda permanece é: até quando vamos ficar inertes diante dessa realidade?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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