Marjorie Marona

Professora de Ciência Política da UNIRIO e pesquisadora do QualiGov - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável.

Opinião

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Limites constitucionais

Na Argentina, a Suprema Corte pode frustrar os planos mais ambiciosos de Milei, um populista da ultradireita com evidente inclinação autoritária

Limites constitucionais
Limites constitucionais
O presidente eleito da Argentina, Javier Milei. Foto: Emiliano Lasalvia/AFP
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A vitória do ultradireitista Javier Milei nas eleições presidenciais da vizinha Argentina aproxima ideologicamente o país de Equador, Paraguai e Uruguai, na América do Sul, além de Guatemala, El Salvador e Costa Rica, na América Central. Acrescenta, ainda, mais um episódio à série de fracassos, diretos ou indiretos, dos incumbentes na região. Assim como Massa, na Argentina, Bolsonaro não se reelegeu no Brasil e o mesmo ocorreu no Chile, Uruguai, Colômbia, Equador, Peru e México. Os desafios enfrentados pela democracia na América Latina se intensificam à medida que o populismo se consolida como elemento central do ciclo político.

Foi a vez de os argentinos depositarem suas esperanças em um político que reza na cartilha do populismo, referindo-se à (sua) classe (política) como casta, para alavancar a retórica do outsider e posicionar uma plataforma abertamente antissistema – qualquer semelhança com a estratégia bolsonarista nas eleições de 2018 não é mera coincidência.

O populismo ignora o papel das instituições e dos mecanismos de representação política em geral. Em democracias, assume uma lógica que implica a necessidade de cooptar, ou pelo menos neutralizar os tribunais constitucionais, cuja autonomia soa como uma ameaça em face da tendência centralizadora e autoritária da liderança.

Atualmente, uma tendência preocupante, relacionada ao uso e abuso da Constituição e das normas jurídicas, amplifica a relevância das cortes constitucionais ante ameaças antidemocráticas. Diante da concentração de poder em um líder carismático e da tentativa de consolidar sua maioria como a única autêntica, os magistrados podem estabelecer limites claros a delinear o que é permitido de acordo com a ordem constitucional.

Esta é a razão pela qual a avaliação das possibilidades de sucesso de Milei não depende apenas de sua capacidade de articulação política ante a conjuntura desfavorável, caracterizada pelo apoio minoritário no Congresso e por um legado de fracassos de incumbentes opositores ao peronismo. Milei enfrentará dificuldades de ordem constitucional, se quiser levar adiante a ideia de que as dificuldades com o Congresso poderão ser superadas por mecanismos de participação direta, como os plebiscitos – que sugeriu para casos tão díspares quanto a revogação da lei que permitiu o aborto, em 2020, e a proposta de dolarização da economia.

Além disso, há dúvidas sobre a constitucionalidade da proposta de descentralização do sistema educacional, conforme apresentada pelo então candidato. Tudo isso sugere que a Suprema Corte Argentina terá um papel relevante a desempenhar na defesa da democracia contra a erosão, melhora do desempenho das instituições democráticas, proteção das minorias discretas e insulares, o que envolve, sobretudo, sua capacidade de resistir às frequentes investidas das lideranças populistas contra si.

É verdade que a vulnerabilidade dos tribunais e cortes constitucionais diante dos avanços autoritários é maior quando o populismo surge em um contexto de governo unificado – o que não é o caso. A legitimidade do Judiciário, no entanto, também conta. É importante observar, portanto, a trajetória de interação entre as elites políticas e judiciais, determinante na definição das reais condições de resistência dos tribunais ante ameaças autoritárias, porque definidora de sua autonomia.

Se, no Brasil, a redemocratização desdobrou-se em significativa autonomia do Supremo Tribunal Federal – que se fez acompanhar de um inegável protagonismo político, alçando-o ao estrelato na resistência às ameaças autoritárias de Bolsonaro –, na Argentina as condições não se duplicam. Los hermanos, apenas recentemente, a partir do embate do governo de Néstor Kirchner com a Corte Suprema de la Justicia de la Nación, introduziram reformas que potencializaram a dimensão política do tribunal, dando início a um processo de redefinição de sua autoridade e legitimidade, que não retrocedeu completamente mesmo em face da relação de tensão que se estabeleceu no governo de Cristina Kirchner.

A chegada de Milei à Presidência não zera o jogo. Ao contrário, a Suprema Corte argentina nunca esteve em tão boa forma – e poderá frustrar os planos mais ambiciosos do líder populista de ultradireita lá para as bandas do Rio da Prata, assim como o Supremo Tribunal Federal fez cá para os lados do Amazonas. •

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Limites constitucionais’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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