Roberto Amaral

robertoamaral@cartcapital.com.br

Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

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Lições de um patriota

Leonel Brizola foi, sem dúvida, o mais influente e longevo quadro da política brasileira a partir dos anos 1960

Lições de um patriota
Lições de um patriota
Brizola trouxe a denúncia do imperialismo para o debate nacional - Imagem: Felipe Varanda/Folhapress
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Não sei com quantos estadistas o processo social contemplou a nossa frágil república. Mas, principalmente na sequência dos anos 1930, dois nomes saltam à vista:  Getúlio Vargas e ­Leonel Brizola. O primeiro inaugura o ciclo trabalhista. O segundo, ­encerrando-o,

cede caminho para a emergência do lulismo, vertente que negara o varguismo, cadinho de todos os vícios do sindicalismo brasileiro, na conclusão primária da social-democracia paulista que, no governo, prometeu “enterrar a era Vargas”.

Getúlio, dominando a política e o imaginário nacional desde 1930, e, com o pequeno intervalo de 1945-1950, governando o País por 19 anos, constitui-se, até aqui, como a nossa maior liderança popular. Riquíssima, é ao mesmo tempo personalidade política a mais contraditória, ao transitar da revolução conservadora de 1930 (movimento liderado por três governadores de estado e operado pela elite do “tenentismo”) à modernização do País, da democracia representativa de 1934 à ditadura do “Estado Novo”, para, enfim, encerrar seus dias de forma trágica na condução frustrada de um governo democrático e nacionalista. Deixou como herança, em um rol extensíssimo, a legislação trabalhista, plataforma nacionalista e um partido político popular, bem como duas lideranças, seus conterrâneos João Goulart e Leonel Brizola.

Embora jamais lograsse a Presidência da República, que tanto perseguiu, e para a qual se preparara no curso de sua longa carreira política – deputado estadual, prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul, deputado federal pelo antigo estado da Guanabara, duas vezes governador do Rio de Janeiro –, Brizola foi, sem dúvida, o mais influente e longevo quadro da política brasileira a partir dos anos 1960, quando, com seu voluntarismo e sua coragem quase temerária, alterou o curso da história escrita pela classe dominante e impediu o golpe de 1961, por meio da Campanha da Legalidade. A posse de Jango mantinha de pé a ordem institucional e ensejaria à então enferma democracia representativa brasileira, uma dramática sobrevida de quase quatro anos, com o permanentemente contestado governo Goulart, durante o qual o País, nada obstante às contradições que militavam em seu bojo, assistiu, ainda que aos trancos e barrancos, a um dos  mais largos  períodos de liberdades democráticas e debates em torno de suas vicissitudes e alternativas, ponto de partida para a elevação da educação das massas, que apavorou as classes dominantes.

A fonte desse Brasil posto em discussão, a ser “passado a limpo” na academia e nas assembleias, como reclamava Darcy Ribeiro, remontava às lides de agosto de 1961. Não fora, porém, uma rebeldia qualquer aquela do jovem governador gaúcho, pois se materializava mediante a mobilização popular, levantando o País amorfo na defesa de um princípio tornado caro: a legalidade democrática.

Que o centenário do líder gaúcho leve à reflexão aqueles comprometidos com a democracia e o combate à desigualdade

A conciliação que se seguiu, qual seja, a condicionante do parlamentarismo de fancaria, traficada no Congresso com os militares e os representantes de sempre da casa-grande, não diminui os méritos do levante gaúcho, e mais ainda justificará o radicalismo que pautará a atuação política de Brizola, daí em diante, correndo o País que pretendia organizar, conhecendo as fragilidades do regime democrático (e, nele, do governo Jango), e certamente antevendo a retomada golpista, pois, a partir de certo momento, a conspiração se fazia à luz do dia: da Campanha da Legalidade resultara a semeadura da lição de que o povo organizado pode decidir seu destino, o que sobressaltava, e sobressalta ainda, os herdeiros do escravismo e da subserviência colonial.

Com seus acertos e seus tantos erros, as esquerdas brasileiras e as forças trabalhistas e populares de um modo geral (aí incluí­das as correntes comunistas tradicionais) haviam assumido um novo papel na política, e os temas paroquianos foram substituídos pelas questões que diziam respeito à soberania nacional, ao desenvolvimento e ao combate às injustiças sociais.

Explica-se, pois, a ojeriza com que ­Brizola sempre foi tratado pelos militares, cujos 21 anos de mandarinato fustigou como poucos dentre os chamados “grandes exilados”. Aliás, com Miguel Arraes, outro político longevo e de raízes populares próximas do antigo petebismo, seria o único sobrevivente da República de 1946 e da frustrada experiência liderada por Goulart,

contestada internamente pela onda conservadora daqueles anos e desestabilizada pelos governos dos EUA, de John ­Kennedy a Lyndon Johnson, a quem caberia ligar o sinal de partida para a conclusão do golpe, operado pelos militares brasileiros.

Sobreviveriam ambos, Brizola e Arraes,­ também ao ocaso da ditadura e, cada um a seu modo, os modos distintos do gaúcho e do sertanejo, com idas e vindas, convergências e conflitos, terminariam por contribuir, nas últimas décadas do século passado, para a ascensão do PT de Lula e do “novo trabalhismo” ao poder.

Os velhos caciques fizeram chegar bandeiras avançadas às grandes massas, sotopostas desde o ocaso do varguismo e a crise das esquerdas, e por isso mesmo devem ser vistos como tributários talvez conscientes da eleição de Lula em 2002, decisiva para o estabelecimento de uma nova correlação de forças, essa que com altos e baixos chega esperançosa aos nossos dias, após os desarranjos que levaram à ascensão do protofascismo.

Brizola trouxe para o debate nacional a denúncia do imperialismo, levantado por Vargas em sua carta-testamento. Ambos sempre contaram com a resistência da burguesia associada dos grandes cartéis, servidoras das grandes potências, da Inglaterra aos EUA, cujos interesses ele afrontou ao nacionalizar a filial da International Telephone & Telegraph (ITT) no Rio Grande do Sul. A imprensa nunca o perdoou por isso. Brizola foi duramente combatido pelos poderosos “Diários e Rádios Associados” de Assis Chateaubriand e pelo poderosíssimo Grupo ­Globo, que, considerando ser insuficiente enxovalhar sua imagem pública, tentou, numa operação associada com o poder militar, surrupiar-lhe a eleição de 1982 para o governo do Rio de Janeiro.

Que a feliz coincidência do centenário de Brizola com a expectativa da eleição de Lula seja a oportunidade de uma reflexão dos brasileiros sobre a crise política que nos alcança em seu ápice. A figura do líder gaúcho chama à responsabilidade cada uma de nossas organizações e lideranças comprometidas com a democracia, o desenvolvimento e o combate sem recesso à ignominiosa desigualdade social que, em pleno século XXI, impede a construção da nação que merecemos ser.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lições de um patriota”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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