Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Lições da escuridão

A privatização desarticulou um dos mecanismos mais importantes de governança e de coordenação estratégica da economia brasileira

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Vamos travar uma rápida conversa a respeito da queda de energia em São Paulo. Queda que perdurou, em algumas regiões do estado e na metrópole paulistana até a última quarta-feira 8. O barraco começou na sexta-feira 3.

A decepção popular com as experiências de privatização contamina gregos e troianos, países ditos adiantados e outros nem tanto. A experiência privatista revela suas entranhas: os capitais desejam ardentemente adquirir empresas produtoras de serviços públicos, primeiro para realizar formidáveis ganhos de capital no momento das aquisições, depois para abocanhar a renda monopolista.

Os ingleses, por exemplo, privatizaram o abastecimento de água e os transportes interurbanos. Num e noutro caso as tarifas subiram muito rapidamente. Em algumas cidades inglesas, as tarifas de água tornaram-se abusivas. O serviço? Uma droga. Os lucros naturalmente aumentaram de forma explosiva. No caso dos ônibus interurbanos na Inglaterra, além da brutal elevação de tarifas, os concessionários privados simplesmente fecharam as linhas menos rentáveis, deixando muitos ingleses sem transporte.

Em editorial recente, o jornal inglês The Guardian proclamou: A privatização é o deus que falhou.

“Como objeto de adoração, essa divindade tem se mostrado cara para o público e uma bonança para relativamente poucos investidores, muitas vezes no exterior. E em áreas-chave, como a habitação popular, provou ser um desastre singular. No entanto, notavelmente, ainda é a solução preferida de qualquer governo conservador para tudo, desde o Royal Mail até casas populares. Talvez os especialistas da TV que falam sobre as greves ferroviárias desta semana poderiam direcionar suas iras não para os trabalhadores, mas para os proprietários e políticos que criaram tal bagunça de um sistema marcado por serviço de má qualidade, aproveitamento abusivo e uma completa falta de responsabilidade”.

Claudio Bravo, goleiro do Manchester City e da seleção chilena, usou o Twitter para manifestar seu apoio aos protestos que inundaram seu país. Bravo descascou a mexerica: “Privatizaram nossa água, luz, gás, educação, saúde, previdência, medicamentos, estradas, jardins, o Deserto do Atacama, o transporte. Falta alguma coisa ou foi demais? Não queremos um Chile para poucos, queremos um Chile de todos”.

O jornal chileno La Nación admite que há certo consenso a respeito das razões dos protestos. Eles respondem a uma percepção generalizada em torno de temas que têm sido objeto de intensos debates nos últimos anos no país: a precariedade do sistema de aposentadorias, o alto valor dos medicamentos, as sucessivas elevações das tarifas de energia.

Depois da bem-sucedida estabilização de 1994, os “reformistas liberais” brasileiros apoiaram sua estratégia em cinco pontos: 1) a estabilidade de preços criou condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado; 2) a abertura comercial imporia disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade; 3) as privatizações e o investimento estrangeiro removeriam os gargalos de oferta na indústria e na infraestrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência; 4) a liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia “poupança externa” em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente; 5) o gotejamento da renda promovida pela acumulação de riqueza na camadas superiores – auxiliada pela ação das políticas sociais “focalizadas” – seria a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade e eliminar a pobreza.

Na verdade, a privatização desarticulou um dos mecanismos mais importantes de governança e de coordenação estratégica da economia brasileira. Os celebrados efeitos da privatização sobre a eficiência da economia não se concretizaram. Senão vejamos: 1) as tarifas e preços das empresas privatizadas produziram um aumento expressivo dos custos dos insumos de uso generalizado; 2) o investimento em infraestrutura passou a correr atrás da demanda, gerando gargalos e pontos de estrangulamento; 3) as grandes empresas “exportaram” os seus departamentos de P&D e os escritórios de engenharia reduziram dramaticamente seus quadros; 4) e iniciativas importantes, como o Centro de Pesquisas da Telebrás, foram praticamente desativadas.

Na visão binária dos liberais, Estado e Mercado deixam de ser instâncias constitutivas do capitalismo enquanto sistema histórico de relações sociais e econômicas e passam a representar alternativas abstratas de organização da sociedade. “Como o senhor prefere, mais Estado ou mais Mercado?” Desconfio que algumas teorias serviriam melhor como um guia de instruções para garçons de restaurantes baratos.

No livro People, Power anda Profits, o nobelizado Joseph Stiglitz faz considerações pertinentes a respeito da obsessão com a privataria que iludiu muita gente na vida contemporânea:

“Há certas coisas, como a defesa nacional, de que todos beneficiamos; estes são chamados de ‘bens públicos’ e devem ser fornecidos coletivamente. Se dependermos da provisão privada de um bem público, haverá uma deficiência de oferta. As pessoas ou empresas pensam apenas em seu próprio ganho, não nos benefícios sociais mais amplos.

Embora a defesa seja o exemplo mais óbvio, há muitos outros: assim como as economias produtoras de arroz se beneficiam da infraestrutura de um bom sistema de canais, também todos nós nos beneficiamos de uma infraestrutura de alta qualidade de estradas, aeroportos, eletricidade, água e saneamento”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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