

Opinião
Lições da China aos emergentes?
O Brasil já ensinou, inclusive aos chineses, mas desaprendeu


Os choques e entrechoques de disparates entre Rússia e Otan no território ucraniano não desestimularam a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) a publicar o texto China’s Structural Transformation, what can Developing Countries Learn?
A experiência chinesa, a partir dos anos 1980, é tomada como um exemplo de construção institucional, pragmatismo e flexibilidade. O documento aponta seis pontos para definir as políticas econômicas que acompanharam o desenvolvimento chinês:
(a) Atenuando flutuações macroeconômicas. Em uma economia baseada no mercado que opera através de ciclos de negócios, flutuações macroeconômicas em torno de uma tendência de crescimento são comuns. Nas economias em desenvolvimento, essas flutuações são acentuadas em razão de suas características estruturais. Os formuladores de políticas da China procuraram ser proativos no enfrentamento desse problema, atenuando tais flutuações para apoiar o crescimento por meio da adoção de uma série de instrumentos de política contracíclica, incluindo ferramentas de política fiscal e monetária, ordens administrativas e reformas institucionais.
(b) Apoio ao investimento e às exportações. O crescimento teve de ser apoiado diretamente, não apenas indiretamente, atenuando as flutuações macro. Ao fomentar investimentos através da implantação de ferramentas de política fiscal e monetária (por exemplo, investimento autônomo; baixas taxas de juro) e apoiando as exportações por meio da adoção de uma taxa de câmbio competitiva.
(c) Mantendo a estabilidade financeira. A China tinha em vigor um quadro macroprudencial que enfatizava, ao longo do processo de desenvolvimento do setor financeiro, um sistema financeiro dominado e denominado em moeda local. O objetivo era reduzir os desencontros cambiais no sistema, o que poderia ser uma grande fonte de instabilidade financeira. Os formuladores de políticas também buscaram o objetivo da estabilidade dos preços, mas não estavam excessivamente obcecados com metas de inflação rigorosas, pois sabiam que choques de preços e volatilidade de preços tendem a ser mais acentuados nas economias em desenvolvimento e, portanto, é necessário ter margem de manobra para lidar com esses eventos de preços.
(d) Gerenciando choques externos. Em um mundo aberto e financeirizado, fluxos voláteis de capital podem ser uma fonte primária de choques. Assim, a China buscou adotar uma abordagem gradual para a liberalização das contas de capital, priorizando, primeiro, a liberalização de fluxos mais estáveis, como o investimento direto produtivo, e apenas em um estágio posterior liberalizando os fluxos de carteira, conhecidos como mais voláteis.
(e) Mantendo em vigor um regime cambial que apoiava a transformação estrutural. Uma vez que ter uma taxa de câmbio competitiva foi essencial no quadro político da China, as autoridades do país liberalizaram gradualmente a taxa de câmbio, começando com um regime duplo para dar uma vantagem competitiva aos seus exportadores, e apenas mais tarde passando para uma taxa de câmbio unificada.
(f) Enfrentando crises financeiras. Proteger a economia de crises financeiras que ocorrem em outros lugares foi essencial. Para isso, a China acumulou grandes reservas estrangeiras como mecanismo de auto-seguro; o acúmulo de reservas também foi resultado de intervenções nos mercados cambiais para manter uma taxa de câmbio competitiva.
Já foi dito recentemente nesta coluna: na aurora dos anos 80 do século passado, as lideranças chinesas valeram-se da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para estimular estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.
O Brasil já foi uma economia que ensinou. Nos idos de 1978, uma missão chinesa aportou às terras de Pindorama para observar e indagar das façanhas brasileiras na caminhada para a industrialização e o desenvolvimento. Nesse momento, fumegavam no Império do Meio as reformas de Deng Xiaoping e o Brasil liderava com folga a marcha da industrialização entre os países então ditos “em desenvolvimento”, hoje apelidados de “emergentes”.
A visita chinesa ocorreu um ano antes do gesto americano empunhado por Paul Volcker, em outubro de 1979. A elevação da taxa de juros pelo Federal Reserve deu impulso à “nova expansão americana”. À sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos impuseram a liberalização financeira urbi et orbi, assim como impulsionaram a metástase produtiva para o Pacífico dos pequenos Tigres e do Novo Dragão chinês.
O Brasil desaprendeu. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lições da China aos emergentes?”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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