Delfim Netto

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Formado pela USP, é professor de Economia, além de ter sido ministro e deputado federal.

Opinião

Lei de Abuso de Autoridade não ameaça qualquer prática jurisdicional

Como disse o ministro Fachin, do STF, num artigo publicado neste mês: ‘A obediência à Constituição é a regra número 1 da segurança jurídica’

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Em corpos diferenciados do funcionalismo público emerge, naturalmente, um corporativismo construído pelo elitismo do seu “espírito de corpo”. Trata-se, de fato, de um anel protetor do bom e do mau uso que seus membros podem fazer de suas prerrogativas. Um exemplo disso é a que o País assiste agora, perplexo: a reação à lei que combate os possíveis abusos de autoridade nos Três Poderes da República.

No fim dos anos 40 do século passado havia, no curso de economia da FEA-USP, uma disciplina, “Instituições de Direito Público”, a cargo do advogado Geraldo Campos Moreira (recrutado politicamente entre os promotores do estado) por quem tinha o poder de organizar o corpo docente. Elegante, inteligente e diligente, dava aulas interessantes. Desincumbia-se bem do seu papel. Em nenhuma delas deixava de insistir que “Direito é Lógica”: de alguns princípios aceitos consensualmente (uma espécie de axiomas) extraíam-se, com rigorosa lógica aristotélica, consequências que informarão o comportamento dos agentes da Justiça (promotores e juízes).

Eventuais dúvidas sobre julgamentos são analisadas com recurso a instâncias jurídicas superiores (colegiadas), porque só outros juízes podem avaliar a razoabilidade de outro juiz. O preparo da ação e o julgamento são influenciados por muitos fatores (inclusive a “visão de mundo” de cada um deles). O importante, entretanto, é que, se o paciente não se conformar com o resultado, há a possibilidade de recorrer a instâncias superiores que, eventualmente, terão a oportunidade de corrigi-lo. Esses parcos conhecimentos me levaram nos últimos 70 anos a aceitar tal mecanismo como satisfatório para minimizar os riscos do sistema.

É por isso que estou surpreso com a reação corporativista contra a Lei de Abuso de Autoridade, que, obviamente, não ameaça qualquer prática jurisdicional que obedeça ao espírito e à letra da Lei. Sobre o poder do Congresso de produzi-la e aprová-la, e o poder do presidente de sancioná-la ou vetá-la parcialmente, não há dúvidas. Entretanto, a palavra final sobre ela (pela rejeição de eventuais vetos) pertence ao Congresso. Mas há um problema lógico muito interessante, apontado pelo competente Elio Gaspari. No caso de eventual denúncia de abuso de autoridade, quem vai julgá-lo? O próprio Judiciário! Logo, se um funcionário da Receita, do Coaf, um promotor ou um juiz se julga ameaçado porque será “controlado” pelo próprio Judiciário, é porque ele não acredita em nada do que foi dito acima!

Quem salvou o dia foi o ilustre ministro João Otávio Noronha, nada menos do que o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que defendeu a legitimidade do controle do abuso de autoridade. Declarou: “Não temos nada a temer. Aquilo vale para todas as autoridades, seja do Judiciário, seja do Executivo, seja do Legislativo. A lei é para todos e nós juízes temos que ter limites na nossa atuação, como assim terão os deputados, como tem o presidente da República, como têm os ministros do Executivo”.

O Ministério Público Federal, por seu corregedor-geral, Oswaldo José Barbosa Silva, já determinou o levantamento do que dizem os procuradores nas redes sociais. Isso também gerou protestos internos que sugeriram que se tratava de uma forma de intimidação e censura prévia. Sua resposta deve tê-los acomodado: “Minha intenção é orientar e agir preventivamente, de forma a evitar, sempre que possível, a abertura de inquéritos administrativos disciplinares”, ou seja, eventuais abusos de autoridade…

A desinformação promovida pela ingenuidade coletiva a respeito da nova lei deve-se à perigosa separação da sociedade em torno da Operação Lava Jato. Como sempre temos dito, ela representa um ponto de inflexão na história econômica do País. Nunca se repetirá o incesto entre o poder incumbente eleito e parte do setor privado que causou prejuízos moral e material incalculáveis à sociedade brasileira e nos levou ao buraco em que nos encontramos. É claro, entretanto, que poderíamos ter reduzido seu custo com uma oportuna e eficiente lei de leniência (que não tem nada a ver com a Operação Lava Jato) que punisse os empreiteiros e os agentes públicos e mantivesse as empreiteiras adequadamente funcionando para salvar a expertise que acumularam, que é patrimônio da nação.

Como disse o ilustre ministro Fachin, do STF, num artigo antológico publicado neste mês no Valor Econômico, “A obediência à Constituição é a regra número 1 da segurança jurídica”. Portanto, a ação de funcionários públicos, procuradores e juízes apoiados nela será ainda mais forte e bem-vinda se respeitar os princípios e os direitos nela inscritos.

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